O preço do pioneirismo
de Giovanni Boccaccio
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor checo, de
língua alemã, Franz Kafka, afirmou, certa feita, que “a literatura é sempre uma
expedição à verdade”. Eu acrescentaria: “Mesmo quando recorre à ficção,
portanto, à fantasia”. Muitas vezes, as histórias inventadas tendem a ser mais
verdadeiras, no sentido de retratar determinadas realidades, costumes e
comportamentos do que acontecimentos reais, caso sejam mal-interpretados.
Determinados escritores, vez ou outra, fogem dos padrões convencionais, os
estatuídos e, mesmo que suas obras a princípio choquem seus contemporâneos (as
novidades, geralmente, enfrentam resistências em quaisquer atividades), se o
que escreveram for, realmente, de qualidade, acabam por se impor e se
constituem em marcos de novos caminhos que, com o tempo se impõem e passam a
ser seguidos por muitos, se tornando, praticamente, em novas regras.
Foi o que aconteceu,
por exemplo, com Giovanni Boccaccio e com seu livro mais famoso, “Decamerão”
(há quem grafe “Decameron”, o que dá na mesma). Ele inovou e sua inovação foi
aperfeiçoada por muitos, ao longo dos séculos e hoje está consagrada, sem que a
maioria sequer reconheça seu pioneirismo. Todavia, admitam ou não, ele é um
marco no que se convencionou chamar de “Realismo” na Literatura de ficção.
Conversando, dia desses, com amigos, a propósito dessa obra fundamental, alguns
se disseram decepcionados com seu teor. Acharam muitas das cem novelas curtas
que ela contém óbvias demais. Outros tantos, criticaram o tom muitas vezes
caricato adotado pelo autor, exagerando nas virtudes e nos defeitos dos
personagens envolvidos. Esse, porém, é o preço pago pelos pioneiros: a
incompreensão.
É fácil criticar o que
outros escreveram, mesmo que ninguém tenha escrito dessa mesma forma antes.
Para valorizar Boccaccio e seu “Decamerão”, é indispensável contextualizar essa
produção. É preciso atentar para a época em que o livro foi escrito, em como
era a Literatura até que ele fosse redigido e como passou a ser depois. E nesse
contexto, não há como não concluir que ambos, a obra e seu autor, são geniais.
Não fossem, há tempos já estariam
esquecidos e, se eventualmente fossem lembrados, seriam citados, apenas, como
exemplos de “exotismo” e nada mais. Mas... não é o que acontece. E nem poderia
ser. O “Decamerão” é original desde sua concepção (é, como diriam os jovens no
seu linguajar característico, uma “boa sacada”) e ao seu próprio título. Este é
uma composição das palavras gregas “deca” (que significa dez) e “hemeron”
(dias, ou jornadas).
Quanto às novelas,
desafio, quem procura defeito nessas narrativas, a escrever cem histórias,
absolutamente diferentes umas das outras, e torná-las todas “geniais”. Algumas
serão (e no caso, são) melhores do que outras, como não poderiam deixar de ser.
Tanto que várias delas inspiraram (e inspiram) escritores do passado e do presente,
que escreveram (e escrevem) versões das mesmas, mas raras sequer parecidas às
originais, quanto mais melhores. Em linhas gerais, o “Decamerão” começa numa manhã
de terça-feira do ano de 1348. É quando sete moças e três rapazes resolvem
deixar a cidade de Florença para fugir da peste negra. O grupo resolve
exilar-se em um castelo, onde seus integrantes estariam a salvo da doença.
Essas pessoas, porém, precisariam arrumar alguma ocupação para espantar o
tédio. O que fazer? Para se distraírem, alguém sugeriu uma brincadeira, logo
aceita por todos. Cada dia, um deles reinaria no castelo por uma jornada
completa. E essa pessoa seria obrigada a narrar dez contos. Foi daí que
surgiram as cem histórias que compõem o “Decamerão”. Isso não é original? É
originalíssimo! Além do que, apresentava um desafio para o autor: o de inventar
cem enredos diferentes para serem narrados pelas dez pessoas do grupo.
Contudo, a vida desses
“exilados” não se restringia a inventar e narrar historinhas, o que já era, por
si só, enorme desafio. Eles passaram dias entre a nobreza, em vida refinada, na
qual se entrelaçam divertimentos campestres, conversas, jogos, jantares e
danças. É, pois, um retrato fiel do comportamento dos florentinos daquele
tempo. Enquanto os que ficaram na cidade morriam como moscas, por causa da
peste negra, esses exilados nada faziam de prático e de útil para socorrer, de
alguma maneira, seus desesperados e aterrorizados concidadãos. Todos os dias da semana (com exceção de
sexta-feira e do sábado, por respeito às conveniências religiosas), cada um
contava uma história, com tema livre, sendo apenas decidido quem deveria narrar
pelo rei ou rainha na véspera.
Há quem encare o
“Decamerão” como coleção de anedotas,
como as que consagrariam, muito tempo mais tarde, o português José Maria Du
Bocage, incorporado ao anedotário de Portugal (e posteriormente do Brasil).
Quem pense assim, ou não leu o livro ou o fez sem a devida atenção que ele
merece. Concordo com um crítico (não consegui identificar qual) que alerta que
no “Decamerão” “há mais que riso, sexo e padres nas histórias criadas por
Boccaccio. O tom cômico, que na obra assume um caráter crítico, se enquadra
numa tradição mental típica da narrativa medieval”.
As novelas, que à
primeira vista podem parecer sem nenhuma relação umas com as outras, seguem um
padrão lógico, que com um pouquinho de observação, fica claro. Constituem um
discurso progressivo. Querem ver como
isso é real? Observe-se que as primeiras histórias versam todas sobre vícios: pederastia,
mentira, violência, representadas especialmente pelo pederasta, usurário,
violento, mentiroso, falsário. Já as últimas tratam de algo que ocorre ainda
nos dias de hoje: das provações que uma esposa suporta pelo marido. Quem
critica o livro, insisto, ou não o leu e sabe, apenas, de uma coisa ou outra do
seu conteúdo, por “ouvir dizer”. Ou não tem capacidade de entendimento, por
isso perde o que ele tem de melhor. Na verdade, a magistral pena de Boccaccio
traçou o que o tal crítico, que não consegui identificar, destacou como sendo:
“Todo o tipo de encruzilhada humana, fruto da fortuna, do amor e da
inteligência”. E isso na metade do século XIV, fazendo, em Literatura, o que
ninguém havia feito antes. Como classificar um escritor assim se não com a
designação que ele tanto fez por merecer, a de gênio? Sim, caro leitor, como?
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