Sunday, May 29, 2016

A reserva do futuro



Pedro J. Bondaczuk


O presidente José Sarney, ao lançar, na sexta-feira, em Brasília, o “Programa Nacional do Bom Menino”, manifestou, em relação ao menor, um desejo que é o de todo o País. Expressou: “Nossa meta é fazer com que não haja no Brasil uma só criança abandonada”.

Atualmente, este é, com certeza, o maior problema nacional, permanente alimentador da crescente onda de violência que toma conta de nossa sociedade e responsável pela emergência de uma nação marginal, de pessoas sem eira e nem beira, sem passado, sem presente e sem qualquer perspectiva de futuro.

As deficientíssimas estatísticas brasileiras variam a respeito da quantidade de menores relegados ao abandono em nosso País. Os números mais citados dão conta da existência de 36 milhões de carentes na faixa etária de zero a 14 anos de idade. Dessa cifra, 12 milhões estariam no mais completo abandono, perambulando pelas ruas das grandes cidades, roubando, prostituindo-se e usando todo o expediente à sua disposição na difícil luta pela sobrevivência.

Políticos de todas as tendências ideológicas e de todos os partidos têm explorado a questão nas campanhas eleitorais, não somente na presente, mas em tantas outras anteriores. Mas de prático, de efetivo, de funcional, quase não se percebe providência alguma.

Um ponto já parece ter ficado bastante claro para qualquer um, por mais leigo que seja sobre este assunto. Que a ação dedicada até aqui para evitar a marginalização e o abandono do menor fracassou por completo. O simples confinamento de crianças em instituições do tipo do antigo SAM e da atual Febem revelou-se contraproducente e com efeito até contrário ao que se esperava dessa providência.

Entregue à guarda de pessoas despreparadas, algumas até mesmo desequilibradas e com sintomas de sadismo, o pequeno infrator, que teoricamente deveria ser recuperado para a sociedade e para a vida em tais locais, na verdade sofre uma influência exatamente ao inverso.

Em contato com outros adolescentes mais traquejados no mundo do crime e da malandragem, acaba sempre se transformando num elemento irrecuperável. Seu destino será, fatalmente, o retorno às ruas, à prática delituosa, à cadeia, assim que adquirir a maioridade, até que a violência que marcou toda a sua infância lhe roube a vida num confronto com a polícia, ou numa briga com outros bandidos, ou num tira-teima em algum presídio superlotado e nauseabundo.

Freqüentemente nos revoltamos quando lemos nos jornais notícias como as que dão conta de que no Irã crianças de nove a onze anos são incorporadas às forças militares, na guerra que esse país trava contra o Iraque. Suas armas de brinquedo são trocadas por metralhadoras de verdade e esses meninos, que ainda nem mesmo entendem as noções básicas da vida, são enviados, compulsoriamente, para a morte, em nome de um conceito que ainda lhes é obscuro, chamado pátria.

Geralmente eles são colocados na vanguarda das tropas, principalmente quando estas atravessam campos minados. Dezenas, centenas e até milhares desses pequeninos corpos são destroçados para tornar livre o caminho dos combatentes. No Afeganistão, segundo algumas denúncias, muitas dessas crianças estariam também sendo utilizadas pelos guerrilheiros em sua luta para expulsar os invasores soviéticos.

No restante do Terceiro Mundo, se a situação não é tão dramática, não deixa de ser, também, penosa. Na maior parte da Ásia, meninas são exploradas para fins sexuais. Em 1980, por exemplo, a imprensa internacional relatou um grande escândalo, quando um europeu contrabandeou da Tailândia uma garotinha de somente sete anos, que já estava sendo prostituída. Nas Filipinas, a questão da prostituição de menores tornou-se autêntica calamidade pública e já mereceu reportagens de grandes revistas norte-americanas e européias. O mal, portanto, é mundial. A humanidade está doente!

Mas há uma outra forma de se abandonar um menor, menos sutil do que esta, mas igualmente nociva. Há muita criança para a qual não falta qualquer bem material. Come do bom e do melhor, reside em casas amplas e luxuosas, possui todos os brinquedos que a imaginação criativa das indústrias do ramo já pôde inventar e nunca teve nenhuma espécie de privação.

No entanto, revela um desajuste contundente, uma desorientação completa, um sentimento doloroso de rejeição. É que muitos pais, na ânsia de conseguirem uma coisa extremamente vaga e subjetiva chamada de “sucesso”, negam a esses filhos o essencial. Não lhes dão a única coisa que eles realmente desejam e necessitam e sem a qual se sentem sós e abandonados: atenção.

O que é necessário para a solução do problema do menor abandonado no Brasil é que as providências não se limitem a pomposos e caros programas, lançados, solenemente, em épocas pré-eleitorais, de cima para baixo. É indispensável uma cruzada nacional nesse sentido, uma ação conjugada e sincera, envolvendo o governo e toda a sociedade, uma mudança nas estruturas distorcidas que se consolidaram no País e que marginalizaram 80% de sua população, fazendo com que nos principais indicadores ocupemos o 54º lugar no mundo, na incômoda companhia dos Estados mais pobres e atrasados do Planeta.

A nossa grande reserva, para que nos tornemos a potência que sonhamos ser, não está no nosso subsolo. Não é o petróleo, o urânio, o manganês, o alumínio, o ouro, o diamante e nenhum outro metal. Nosso potencial maior não está no desenvolvimento industrial, na expansão da nossa agricultura e nem na crescente evolução do Produto Interno Bruto. O maior capital que o Brasil tem e que insensatamente está desperdiçando são as suas crianças. E, ao abandoná-las, está jogando fora todo o seu futuro.    


(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 12 de outubro de 1986).

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