Monday, October 27, 2014

Vocação pacificadora

  
Pedro J. Bondaczuk


O primeiro-ministro indiano, Rajiv Gandhi, que há seis dias completou seu primeiro ano de mandato, vem se revelando um emérito pacificador. Quando assumiu o governo do segundo país mais populoso do Planeta, dividido num sem número de etnias, com línguas, costumes e religiões os mais diversos, a Índia estava em franca ebulição. Sua antecessora e mãe, Indira Gandhi, acabara de ser assassinada por extremistas "sikhs" e os hinduistas promoviam cenas pavorosas de violência por todas as partes. Apenas para que o leitor tenha uma idéia, em três dias de baderna foram mortas três vezes mais pessoas do que as vítimas dos conflitos raciais sul-africanos em todo um ano.

Rajiv, entretanto, com menos de uma semana no poder, retomou o controle dos acontecimentos. Indenizou os "sikhs" atingidos pelos atos de vandalismo, puniu alguns responsáveis pelos crimes e iniciou um processo de pacificação interna, que desembocou nas eleições do mês passado no problemático e rico Estado do Punjab. Aliás, quando ele marcou esse pleito, foi acusado até de irresponsável, pelos seus opositores internos e externos, como se democracia pudesse ser um risco para quem quer que seja. O processo eleitoral em questão, contudo, foi dos mais calmos e quem ganhou, levou. E foi o partido da oposição, Akali Dahl.

Contornados alguns dos mais cruciais problemas domésticos, Rajiv parte agora para uma política de convivência pacífica com seus vizinhos. Alguns, poderosos, como a China. Outros, briguentos, como o Paquistão, há muito desejoso de ir à forra da derrota militar sofrida em 1971, oportunidade em que perdeu a parte oriental do país, que hoje é a República independente de Bangladesh. O primeiro-ministro indiano, que havia mantido contatos com o presidente paquistanês, general Zia Ul-Haq, em Nova Delhi, quando do sepultamento de sua mãe, em novembro de 1984, voltou a se reunir informalmente com ele no mês passado, em Nova York, quando ambos compareceram às cerimônias dos 40 anos da ONU. E segundo observadores, com acesso aos dois países, Índia e Paquistão estão muito próximos de resolver suas principais pendências, existentes desde 1947, quando se separaram, integrantes que eram de um só território colonial britânico, e conquistaram suas respectivas independências.

Mas o caso mais sério que os indianos possuem com os vizinhos é com a China. Em 1962, por causa de uma série de desavenças, chegaram até mesmo a pegar em armas um contra o outro. Em 20 de outubro daquele ano tropas chinesas invadiram a região de Ladak, do território contestado de Caxemira, além de ameaçarem o estratégico Sikkim, uma pequena faixa de terra, autêntica cunha entre o Nepal e o Butão, tão pequena que até é difícil de ser encontrada no mapa. O conflito, na ocasião, só não foi mais sério graças à intervenção soviética. Mas a tensão entre Pequim e Nova Delhi permaneceu.

O tempo passou, muita coisa mudou pelos lados da Ásia, mas os dois países mais populosos do Planeta, que sozinhos têm quase a metade de toda a população mundial, continuaram se hostilizando. Ou, pelo menos, se ignorando solenemente. A Índia, no período, trocou de governo seis vezes: Jawaharlal Nehru, Lal Bahadur Shastri, Indira Gandhi, Morarji Desai, novamente Indira e Rajiv. A China foi mais modesta. Mas perdeu dois dos baluartes do seu regime, Chu En Lai e Mao Tse Tung e iniciou um período inédito de ocidentalização e até uma ousada guinada para o capitalismo. E somente agora, 23 anos após aquela desastrada troca de tiros de 1962, ambos conseguem sentar-se ao redor de uma mesma mesa e discutir civilizadamente suas pendências territoriais.

Rajiv Gandhi, portanto, ao que tudo leva a crer, passará para a história como o governante de uma nova Índia. Não aquela famélica e necessitada, que aparecia nos noticiários, até a década de 60, como exemplo de fome e de toda a sorte de carências. Hoje o país é auto-suficiente em alimentos e até exporta cereais. Mas de uma nação madura, consciente, vivida e que faz justiça ao título de "a maior democracia do mundo". Ou seja, a Índia que um outro Gandhi, o "Mahatma" tanto sonhou e pela qual morreu.

(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 6 de novembro de 1985)


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