Totalitarismo
castra a criatividade
Pedro J. Bondaczuk
O Estado totalitário, desde quando surgiu a primeira
e mais remota das civilizações, sempre exerceu uma influência nefasta sobre as
mentes criativas. Os períodos em que as artes mais sofreram foram exatamente
aqueles em que tiranos insensíveis e muitas vezes corruptos (quando não
completamente loucos) reinaram com mão de ferro. Vaidosos ao extremo, esses
monarcas acostumaram-se a premiar pessoas medíocres que exercessem com maestria
a condenável atividade da bajulação.
Em contrapartida, puniam severamente, com
banimentos, com o cárcere, quando não com a morte, os que ousassem expressar os
sentimentos do povo escravizado, dando voz ao seu sofrimento e à sua repulsa.
Ainda hoje os "ideologismos" inconseqüentes e fracassados seguem
exercendo sua ação funesta sobre os gênios criativos. Todavia, para a
felicidade da espécie humana, embora os Estados opressores consigam sufocar
magníficas manifestações de criatividade, não possuem o condão de extingui-las.
A arte verdadeira, genuína, descomprometida, aquela
que nasce espontânea na alma da gente simples, sobrevive a regimes, sistemas,
tiranos, ditadores e Estados policiais. A maior prova disso foi dada
ultimamente por um poeta. Trata-se de um checo, virtualmente desconhecido no
Ocidente, mas que em seu país foi alçado à categoria de "o mais querido da
população". Ele é Jaroslav Seifert, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura
de 1984, que ontem deixou a humanidade um pouco mais pobre, ao cumprir a sua
trajetória neste mundo. Não apenas a Checoslováquia, mas sobretudo todos nós,
perdemos um pouco com a morte desse sonhador, num mundo onde sobram os
violentos e minguam os seres sensíveis e ternos.
A carreira de Seifert foi toda ela marcada pela
política, embora ele jamais desejasse se envolver nesse tipo de questão. Homem
corajoso e dinâmico, e sobretudo um patriota, não conseguiu se calar diante dos
que enxovalharam a sua pátria, permitindo que ela fosse vítima de uma
humilhante ocupação estrangeira.
Ao contrário dos poderosos de plantão, que dobraram a
espinha diante do dominador, apenas para não perderem mesquinhos privilégios,
ele denunciou acidamente, com toda a veemência dos seus versos, os crimes que
foram cometidos no país em nome da sagrada palavra "liberdade". Pagou
caro por isso, é evidente, tendo inúmeras portas fechadas e sendo transformado,
da noite para o dia, de um poeta nacional, em um "decadente", pela
estúpida máquina burocrática estalinista, como se ela tivesse esse poder e enxergasse
um palmo na frente do nariz.
Mas quem é de fato competente, sempre, um dia,
aparece. Aquele que possui méritos, por mais que seus adversários gratuitos
tentem desmerecer seu talento, apenas conseguirão, na verdade, realçá-lo.
Embora pouca coisa de Seifert tenha chegado ao Ocidente, e assim mesmo, por uma
barreira insuperável de língua, com menos força do que no seu idioma original,
é possível de se detectar uma sensibilidade, um vigor e uma autenticidade
notáveis em cada verso, em cada estrofe e em cada poema seu. Em seu ritmo
plangente, fica desnuda, a quem souber apreciar, a carinhosa alma eslava, etnia
que tantos gênios forneceu à humanidade.
Muita gente estranha que a literatura russa, e por
extensão a de todo o Leste da Europa, que revelou escritores fabulosos como
Gogol, Puchkin, Tolstói e Dostoievski (para citar apenas alguns), quase não
tenha revelado grandes nomes nestes quase 70 anos de comunismo. Talvez o
dissidente Zamyatine tenha a resposta certa para isso, quando afirma: "Se
se espera do escritor que ele seja um crente real e fiel, se não lhe permitem
ironizar como Swift, ou rir de tudo como Anatole France...receio que a
literatura russa só terá um futuro: o passado".
O mesmo se aplica a todo Estado totalitário que
pretenda transformar a atividade intelectual num mero instrumento de difusão
ideológica. Apesar disso, milhares de poetas, contistas, romancistas, pintores,
escultores e cultores de todas as outras artes, certamente terão o destino de
Jaroslav Seifert. Serão párias para os poderosos. Mas viverão eternamente no
coração dos seus povos. E no final das contas, é isso o que realmente importa.
(Artigo publicado na página 9, Internacional, do
Correio Popular, em 11 de janeiro de 1986)
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment