Friday, October 31, 2014

Totalitarismo castra a criatividade


Pedro J. Bondaczuk



O Estado totalitário, desde quando surgiu a primeira e mais remota das civilizações, sempre exerceu uma influência nefasta sobre as mentes criativas. Os períodos em que as artes mais sofreram foram exatamente aqueles em que tiranos insensíveis e muitas vezes corruptos (quando não completamente loucos) reinaram com mão de ferro. Vaidosos ao extremo, esses monarcas acostumaram-se a premiar pessoas medíocres que exercessem com maestria a condenável atividade da bajulação.

Em contrapartida, puniam severamente, com banimentos, com o cárcere, quando não com a morte, os que ousassem expressar os sentimentos do povo escravizado, dando voz ao seu sofrimento e à sua repulsa. Ainda hoje os "ideologismos" inconseqüentes e fracassados seguem exercendo sua ação funesta sobre os gênios criativos. Todavia, para a felicidade da espécie humana, embora os Estados opressores consigam sufocar magníficas manifestações de criatividade, não possuem o condão de extingui-las.

A arte verdadeira, genuína, descomprometida, aquela que nasce espontânea na alma da gente simples, sobrevive a regimes, sistemas, tiranos, ditadores e Estados policiais. A maior prova disso foi dada ultimamente por um poeta. Trata-se de um checo, virtualmente desconhecido no Ocidente, mas que em seu país foi alçado à categoria de "o mais querido da população". Ele é Jaroslav Seifert, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1984, que ontem deixou a humanidade um pouco mais pobre, ao cumprir a sua trajetória neste mundo. Não apenas a Checoslováquia, mas sobretudo todos nós, perdemos um pouco com a morte desse sonhador, num mundo onde sobram os violentos e minguam os seres sensíveis e ternos.

A carreira de Seifert foi toda ela marcada pela política, embora ele jamais desejasse se envolver nesse tipo de questão. Homem corajoso e dinâmico, e sobretudo um patriota, não conseguiu se calar diante dos que enxovalharam a sua pátria, permitindo que ela fosse vítima de uma humilhante ocupação estrangeira.

Ao contrário dos poderosos de plantão, que dobraram a espinha diante do dominador, apenas para não perderem mesquinhos privilégios, ele denunciou acidamente, com toda a veemência dos seus versos, os crimes que foram cometidos no país em nome da sagrada palavra "liberdade". Pagou caro por isso, é evidente, tendo inúmeras portas fechadas e sendo transformado, da noite para o dia, de um poeta nacional, em um "decadente", pela estúpida máquina burocrática estalinista, como se ela tivesse esse poder e enxergasse um palmo na frente do nariz.

Mas quem é de fato competente, sempre, um dia, aparece. Aquele que possui méritos, por mais que seus adversários gratuitos tentem desmerecer seu talento, apenas conseguirão, na verdade, realçá-lo. Embora pouca coisa de Seifert tenha chegado ao Ocidente, e assim mesmo, por uma barreira insuperável de língua, com menos força do que no seu idioma original, é possível de se detectar uma sensibilidade, um vigor e uma autenticidade notáveis em cada verso, em cada estrofe e em cada poema seu. Em seu ritmo plangente, fica desnuda, a quem souber apreciar, a carinhosa alma eslava, etnia que tantos gênios forneceu à humanidade.

Muita gente estranha que a literatura russa, e por extensão a de todo o Leste da Europa, que revelou escritores fabulosos como Gogol, Puchkin, Tolstói e Dostoievski (para citar apenas alguns), quase não tenha revelado grandes nomes nestes quase 70 anos de comunismo. Talvez o dissidente Zamyatine tenha a resposta certa para isso, quando afirma: "Se se espera do escritor que ele seja um crente real e fiel, se não lhe permitem ironizar como Swift, ou rir de tudo como Anatole France...receio que a literatura russa só terá um futuro: o passado".

O mesmo se aplica a todo Estado totalitário que pretenda transformar a atividade intelectual num mero instrumento de difusão ideológica. Apesar disso, milhares de poetas, contistas, romancistas, pintores, escultores e cultores de todas as outras artes, certamente terão o destino de Jaroslav Seifert. Serão párias para os poderosos. Mas viverão eternamente no coração dos seus povos. E no final das contas, é isso o que realmente importa.

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 11 de janeiro de 1986)


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