Agressor
é conhecido
Pedro J.
Bondaczuk
Estudos feitos por especialistas norte-americanos,
divulgados em 1996, concluem que uma, em cada três mulheres no mundo, sofre
estupro, ou abuso sexual, em alguma fase da sua vida! E que a maioria absoluta
dos agressores é constituída por pessoas conhecidas da vítima.
São bastante numerosos, inclusive, os casos de
incesto, em que o estuprador é o próprio pai ou irmão, que reincidem,
seguidamente (às vezes por anos a fio) no crime, sem que a pessoa agredida tenha
sequer a coragem de fazer a denúncia, por se sentir, de alguma forma, ameaçada.
Vários livros foram escritos a respeito. Filmes e peças teatrais foram
apresentados. Estudos e mais estudos têm sido divulgados. Tudo para tentar
entender o que leva os homens a agir dessa forma.
Um dos livros mais completos sobre o tema, lançados
ultimamente no Brasil, traz um título bastante sugestivo: "Eu Nem
Imaginava que Era Estupro". Foi escrito por Robin Warshaw e publicado
pela, Editora Rosa dos Ventos. É baseado num relatório da revista MS, uma das
mais polêmicas e tradicionais dos Estados Unidos, dirigida por Gloria Steinem,
ex-coelhinha da Playboy que se tornou escritora feminista internacionalmente
famosa.
O livro ensina, entre outras coisas, a reconhecer,
combater e principalmente a sobreviver psicologicamente a certas formas veladas
de estupro, como aquelas cometidas por namorados, (muitas vezes até por
maridos), por conhecidos, ou mesmo por
parentes. Trata-se de uma das análises mais completas e mais profundas desse
tipo tão comum de delito, que deixa marcas profundas nas vítimas, que as
carregam pela vida inteira. Não são raras as mulheres estupradas que cometem
suicídio ou que fazem uma ou várias tentativas.
Robin Warshaw tem experiência suficiente para tratar
do assunto. Não por causa da profissão, já que não é médica, psicóloga,
advogada e nem policial. É jornalista, especializada em temática social.
Escreve para o "The New York Times", "Nation Philadelphia
Inquirer Magazine" e "Woman' Day", entre outras publicações. Mas
Robin passou pela terrível experiência do estupro. E resolveu escrever o livro,
ao lembrar a forma como foi tratada pelas autoridades quando, na juventude, foi
estuprada pelo namorado.
A jornalista constata: "Alguns jurados...ainda
desconfiam da mulher que traz para o tribunal acusações de estupro por alguém
conhecido. Ela é criticada pelo que fez ou por quem é, em vez de o homem ser
condenado pelas suas ações criminosas". O número de condenações nesses
casos, embora muito aquém do desejável, vem aumentando, nos últimos anos, nos
Estados Unidos. Mas a maioria das mulheres estupradas ainda mantém em segredo
as agressões sofridas.
Dois famosos casos de estupros, cometidos por
pessoas conhecidas das vítimas, ambos ocorridos em 1991, nos Estados Unidos,
agitaram a opinião pública, não somente norte-americana, mas de todo o mundo,
pelos desfechos diferentes que tiveram, suscitando toda a sorte de debates em
torno do tema.
Em um, ocorrido no Estado da Flórida, o estuprador
escapou impune e foi absolvido pelos jurados. Em outro, no Estado de Indiana, o
agressor (como o primeiro, também figura de grande projeção internacional), foi
condenado a seis anos de prisão, tendo cumprido, encarcerado, mais da metade da
pena. O primeiro dos acusados era um jovem branco, membro de uma das mais
tradicionais famílias norte-americanas (sobrinho do senador Edward Kennedy) e
estudante de medicina, famoso com playboy e grande conquistador.
O segundo réu era negro, ex-campeão mundial de boxe
dos pesos pesados, autêntico mito do esporte, com fama de truculento, tendo
várias passagens pela polícia por agressão, inclusive contra mulheres.
O primeiro, William Kennedy Smith, foi isentado de
culpa (apesar das contundentes provas da sua culpabilidade) de haver estuprado
Patrícia Bowman, mãe solteira, que acabou sendo tratada no tribunal não como
vítima, que de fato era, mas como se fosse a criminosa.
O segundo, o boxeador Mike Tyson, foi condenado,
pelo mesmo delito, a seis anos de prisão, pelo estupro de Desirre Washington,
caloura de faculdade, de 18 anos, concorrente ao título de Miss Black America
pelo Estado de Rhode Island.
Analisando o primeiro caso, Robin Warshaw escreve em
seu livro: "A ação contra (William Kennedy) Smith (sobrinho do senador
Edward Kennedy)... alterou o processo de Patricia Bowman muito antes da
intimação do tribunal. Os investigadores de acusação interrogaram-na
reiteradamente sobre sua queixa contra Smith, um membro do proeminente clã dos
Kennedy. Perguntaram sobre seu uso ilegal de drogas, sua saúde mental, até por
que ela não tinha pagado a conta de um alergista há nove anos. Mas essas
investigações não representaram nada, comparadas com sua dissecação pública por
uma mídia voraz, tanto impressa como eletrônica. Afinal, isso era uma história
dos Kennedy e, embora os detalhes do caso fossem dolorosamente comuns, a
maneira como a imprensa tratou o caso não o era. Enquanto Smith era retratado,
na maioria das vezes, como um estudante de medicina/playboy, seguindo os passos
movidos a testoterona dos seus parentes masculinos, a história pessoal de
Bowman era revelada minuciosamente, de forma excruciante e condenatória".
O caso em questão ilustra bem como as vítimas de
estupro são tratadas, na maioria dos casos, quando recorrem à justiça. Principalmente
quando o agressor ocupa posição social de destaque e a mulher estuprada tem
antecedentes que não sejam abonadores. Raramente a imprensa e os jurados se
atêm, em tais circunstâncias, estritamente às provas. A queixosa acaba sendo
tratada como criminosa, tendo sua vida esmiuçada publicamente, em especial nos
detalhes escandalosos (caso existam).
Warshaw comenta: "No New York Times, o jornal
mais importante da nação e talvez do mundo, os leitores tomaram conhecimento
dos pormenores confusos do divórcio dos pais de Bowman, que ela 'teve uma
pequena rebelião selvagem' na escola secundária, 'trabalhava esporadicamente' e
nunca casou com o pai do seu filho. O tom crítico da matéria do Times foi
claramente expresso pela sua manchete, 'Inquérito de Estupro de Mulher na
Flórida, um Salto Rápido na Ascensão Econômica e Social". A implicação era
clara: pôr em dúvida os motivos de uma mulher com raízes da classe operária que
apresentava acusação de estupro contra um Kennedy".
E a jornalista conclui: "...O estupro ainda
constitui um pesado estigma social para quem o sofre". Esta, aliás, ainda
é a realidade na maior parte do mundo. A vítima sofre, tanto na carne quanto e
principalmente em sua dignidade, esse tipo (tão comum) de agressão, mesmo que
consiga a reparação na Justiça.
A respeito do rumoroso caso da Flórida, Robin
Warshaw informa: "No banco das testemunhas, Bowman contou sua história:
ela encontrou Smith num bar, à primeira vista não se deu conta de que ele era o
sobrinho do senador Edward Kennedy, dançou com ele e deu-lhe uma carona até a
casa da família dele, em frente à praia, por solicitação dele. Eles caminharam
na areia, beijaram-se, e depois Smith a derrubou e a estuprou. Havia lacunas e
inconsistências no seu relato".
Quem acompanhou o julgamento, no recinto do tribunal
ou através dos meios de comunicação, que deram ampla cobertura do caso, pôde
perceber a ostensiva má vontade do juiz que presidia a sessão, em relação à
queixosa. Ele chegou a recusar, sem nenhuma explicação, o testemunho de três
mulheres, que disseram ter sido agredidas por Smith, sob circunstâncias
similares às de Bowman.
Ficou mais do que claro que o magistrado já havia
"preconcebido" seu veredito. E este era favorável, evidentemente, ao
jovem Kennedy, no que foi secundado pela maior parte da mídia de todo o país. O
mesmo ocorreu, provavelmente, com os jurados. Os membros do júri
impressionaram-se tanto com o desnível social dos protagonistas do caso, quanto
com a vida pregressa da vítima, quando lhes competia, tão somente, julgar se
atendo, "exclusivamente", às provas do processo, que eram esmagadoras
contra o agressor. Tanto isso é verdade, que precisaram de somente 77 minutos
para decretar a inocência de William Kennedy.
Warshaw relata, ainda: "Na semana seguinte (ao
depoimento da queixosa), Smith contou a sua versão: ele dançou com Bowman, eles
se beijaram, depois ela lhe ofereceu uma carona para casa. Ele achou que ela
estava agindo de forma confusa e desorientada, mas teve relações sexuais com
ela assim mesmo. Quando ele a chamou pelo nome de uma outra mulher, ela o
'mordeu' e bateu nele. Em seguida, ele foi nadar. Quando viu Bowman alguns
minutos mais tarde, ela o acusava de estupro. Smith disse que ele não sabia a
origem das equimoses, mais tarde visíveis no corpo dela".
Qual a conclusão que se pode tirar dos depoimentos
das vítimas, nesse julgamento e no de Mike Tyson? A óbvia! Robin Warshaw
afirma: "Através das histórias que Bowman e (Desirre) Washington contaram,
os homens pareciam supor que tinham direito a sexo, que as mulheres que estavam
com eles eram inconseqüentes e que alguma resistência deveria ser
ignorada".
Essa, aliás, é a mentalidade de todos estupradores,
conforme ficou patenteado na ampla e abrangente pesquisa nacional feita pela
revista MS, envolvendo mais de seis mil entrevistas, em todo o território dos
Estados Unidos. Parte considerável dos que cometem estupro (e até grande
parcela das vítimas, mal informadas) não consideram que aquilo que fizeram foi
errado, e que foi, por conseqüência, um crime. Deixam implícito um suposto
"direito a sexo" com suas vítimas. E consideram a resistência das
mulheres não como explícita e clara recusa ao ato sexual, mas como "parte
do jogo" de sedução e conquista.
Sobre o caso de Mike Tyson, Robin Warshaw escreve:
"Desirre Washington era caloura de faculdade, aos 18 anos, concorrente a
Miss Black America de Rhode Island, e tinha viajado para Indianápolis para o
concurso de 1991. Ela e outras concorrentes conheceram Tyson e pediram-lhe que
posasse para uma foto. Quando ele marcou um encontro com Washington, ela lhe
deu o número do telefone de seu quarto de hotel. Ele ligou após a meia-noite,
oferecendo-lhe um passeio em sua limusine. Tyson tentou beijá-la na limusine.
Quando ela recuou, ele comentou que ela era 'uma boa moça cristã'. Depois disse
que tinha de voltar ao seu quarto para dar um telefonema. Foi lá que ele a
agarrou, eles lutaram, e ele a estuprou. Um médico na sala de emergência disse
que os ferimentos de Washington eram coerentes com um estupro. O chofer de Tyson
testemunhou que a mulher estava perturbada quando deixou o quarto de hotel do
boxeador. Tyson contestou a acusação, dizendo que Washington teve relações
sexuais com ele voluntariamente. A defesa argumentou que ela consentiu para
obter dinheiro. Sustentaram que a reputação de Tyson como mulherengo era tão
notória que ela sabia que aceitando um encontro com ele significava concordar
em ter também relações sexuais".
As provas contra o lutador de boxe, negro, apesar de
contundentes e esmagadoras, eram até mais inconsistentes e mais fracas do que
as apresentadas contra William Kennedy Smith, branco. No entanto, um foi
condenado (justamente por sinal) e o outro absolvido (contrariando as mais
primárias regras de justiça). Claro que o "status" e a cor pesaram, e
muito, em decisões tão diferentes, para delitos tão semelhantes, apesar das
reiteradas e enfáticas negativas dos envolvidos nos dois julgamentos, naquela
ocasião.
Para enfatizar as inconsistências legais dos
tribunais norte-americanos, nos casos de estupro, Robin Warshaw narra, em seu
livro, outro caso que ficou famoso nos Estados Unidos: "Exatamente quão
inconsistente já pode ser uma lei estadual protetora do estupro, especialmente
quando aplicada num caso de estupro por alguém conhecido, ficou claro durante
um julgamento em Nova Jersey em 1992 que despertou a atenção do país.
Focalizava um acontecimento de 1989, quando treze rapazes adolescentes do
confortável subúrbio de Glen Ridge encontraram uma moça de 17 anos que
conheciam. Eles lhes prometeram um encontro com um deles, se ela os seguisse
até o porão de uma casa. Ali os rapazes mandaram a moça tirar a roupa,
acariciar a si mesma e fazer sexo oral com alguns deles. Ela fez. Depois,
alguns dos adolescentes inseriram um cabo de vassoura, um fino bastão de
beisebol e uma vareta, um de cada vez, na sua vagina, enquanto os que
observavam insistiam, 'mais fundo'. Essa seqüência chocante foi agravada pelo
fato central do caso: a menina era levemente retardada, com um Q.I. de 64 e o
nível de relacionamento social de uma criança de oito anos. Ao longo da sua
vida, ela sempre fez tudo que seus companheiros e companheiras lhe pediam que
fizesse. Os jovens conheciam sua história. Devido às suas limitações mentais, o
que aconteceu não foi meramente uma fantasia sado-sexual adolescente, vivida à
custa de uma menina submissa --- foi estupro de gangue".
E a jornalista conclui: "Quatro homens foram a
julgamento, acusados de ataque sexual e conspiração: Kevin e Kyle Scherzer,
Christopher Archer e Bryant Grober. Três tinham 21 anos quando o julgamento
começou; um tinha vinte...O júri condenou os quatro". Neste caso, os
jurados agiram como deveriam agir. Ou seja, atendo-se exclusivamente às provas
dos autos e ao texto da lei penal do Estado.
O que, afinal, caracteriza o estupro? Muita gente
ainda confunde esse crime com o de sedução. A maior parte dos estatutos
norte-americanos, no entanto, descreve esse delito da seguinte forma:
"penetração sexual não desejada, realizada por força, ameaça de ferir, ou
incapacidade mental ou física de dar consentimento (incluindo
intoxicação)". Descrição clara, direta e objetiva, para não deixar nenhuma
dúvida!
Robin Warshaw acrescenta: "...Estupro é
violência, não sedução. No estupro por um estranho e no estupro por alguém conhecido,
o agressor toma a decisão de forçar sua vítima a se submeter à sua vontade. O
estuprador acredita que ele tem o direito de forçar relações sexuais com uma
mulher e vê a violência interpessoal (seja simplesmente dominando a mulher com
seu corpo ou brandindo uma arma) como uma maneira aceitável de conseguir seu
objetivo".
Susan Brownmiller, no seu livro referencial
"Against Our Will: Men, Women and Rape" (Contra Nossa Vontade:
Homens, Mulheres e o Estupro), conclui, oportunamente: "Todo estupro é um
exercício de poder".
Milhões de norte-americanas são vítimas, anualmente,
desse tipo de agressão. Variam as circunstâncias, mas a forma de ação e a
mentalidade que a move é sempre a mesma. De acordo com o estudo da revista MS,
uma em cada 4 mulheres entrevistadas pelos pesquisadores, foi vítima de estupro
ou tentativa de estupro. Oitenta e quatro por cento das mulheres estupradas
conheciam seus agressores. Cinqüenta e sete por cento dos estupros aconteceram
em encontros.
Num ano, 3.187 mulheres denunciaram que
sofreram: 328 estupros (como definidos
por lei); 534 tentativas de estupro (como definidas por lei); 837 episódios de
coerção sexual (relação sexual conseguida pelos argumentos continuados ou
pressão do agressor) e 2.024 experiências de contato sexual não desejado
(carícias, beijos ou afagos contra a vontade da mulher).
Um, em 12 estudantes pesquisados, no estudo da
revista MS, tinha cometido atos que se enquadravam nas definições legais de
estupro ou tentativa de estupro. Para ambos, homens e mulheres, a idade média
em que ocorria um estupro (tanto como perpetrador quanto como vítima) era de 18
anos e meio. Apenas 27% das mulheres, cuja agressão sexual se enquadrava na
definição legal de estupro, pensaram em si mesmas como vítimas de estupro.
Mais ou menos 75% dos homens e pelo menos 55% das
mulheres envolvidos em estupros por alguém conhecido estiveram bebendo ou
tomando drogas imediatamente antes do ataque.
Das 3.187 estudantes universitárias pesquisadas pela
revista MS, 15,3% tinham sido estupradas; 11,8% foram vítimas de tentativa de
estupro; 11,2% viveram experiência de coerção sexual e 14,5% tinham sido
tocadas sexualmente.
Quarenta e um por cento das mulheres que foram
estupradas eram virgens na época das suas agressões. Quarenta e dois por cento
das vítimas de estupro não falaram com ninguém sobre suas agressões. Somente 5%
denunciaram seus estupros à polícia. Somente 5% procuraram ajuda em centros que
prestam auxílio em caso de estupro.
Oitenta e três por cento das mulheres que foram estupradas
por homens que elas conheciam tentaram argumentar ou negociar com seu agressor;
77% se mantiveram quietas, na esperança de repeli-lo; 70% lutaram fisicamente;
11% gritaram por socorro e 11% tentaram fugir.
Quarenta e dois por cento das mulheres que foram
estupradas disseram que tiveram sexo novamente com os homens que as agrediram.
Cinqüenta e cinco por cento dos homens que estupraram disseram que tiveram sexo
novamente com suas vítimas. Quarenta e um por cento das mulheres estupradas
disseram que acham que serão estupradas novamente.
Tendo ou não reconhecido sua experiência como
estupro, 30% das mulheres identificadas no estudo da revista MS como vítimas de
estupro consideraram o suicídio após o incidente; 32% procuraram psicoterapia;
22% entraram em cursos de autodefesa e 82% disseram que a experiência
modificou-as de forma permanente.
No ano anterior ao estudo da revista MS, 2.971
homens com instrução universitária relataram que cometeram: 187 estupros, 157
tentativas, 327 episódios de coerção sexual e 854 incidentes de contato sexual
não desejado. Dezesseis por cento dos estudantes homens que cometeram estupro e
10% dos que tentaram um estupro tomaram parte em episódios envolvendo mais de
um agressor. Trinta e oito por cento das moças estupradas tinham 14, 15, 16 ou
17 anos na época das suas agressões.
Do livro “Guerra dos Sexos”, Pedro J. Bondaczuk,
1999, inédito.
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