Friday, October 03, 2014

O complexo livro “mais simples” de Virginia

Pedro J. Bondaczuk

O romance “Orlando” (cujo título, em inglês, é “Orlando: a biography”) é considerado, por muitos, como a obra-prima de Virgínia Woolf. Foi publicado em 1928, quando a escritora estava com 46 anos de idade. Discordo, todavia, dessa opinião. Apresso-me, porém, em explicar que não considero o livro ruim ou inferior ao restante da produção dela. Muito pelo contrário. Ocorre que para se fazer tal avaliação, que é, antes de tudo, subjetiva, é indispensável que quem a faça conheça a totalidade da obra do escritor ou escritora cujo romance específico seja objeto desse tipo de classificação (como é o caso). E, cá para nós, dificilmente quem opina dessa forma tem esse capricho ou essa oportunidade. Não costumo estabelecer esse tipo de “ranking”, até porque, cada livro tem os próprios méritos (e talvez deméritos), motivação própria e intenções que nem o autor é capaz de explicar. Imaginem terceiros!

“Orlando”, com toda sua complexidade (e é complexo), é uma das produções literárias de Virgínia Woolf mais acessível ao leitor, embora exija dele raciocínio, análise e total concentração, para não se perder na leitura. É dos poucos livros da escritora (não sei dizer se há outros) em que ela não recorre ao tal do “fluxo de  consciência”. Essa forma de escrever merece, pelo menos, uma explicação, por elementar que seja. Aliás, merece até mesmo um tratado o que, evidentemente, não farei. Para não me perder em divagações e ser minimamente objetivo, recorro à enciclopédia eletrônica Wikipédia, para guardar um pouquinho que seja de coerência. Sou maniacamente didático, ora se sou.

“Fluxo de consciência”, de acordo com a fonte citada, é, grosso modo, “uma técnica literária usada, primeiramente, por Edouard Dujardin em 1888, em que se procura transcrever o complexo processo de pensamento de um personagem, com o raciocínio lógico entremeado com impressões pessoais momentâneas e exibindo os processos de associação de idéias. A característica não-linear deste processo de pensamento leva frequentemente a rupturas na sintaxe e na pontuação”. Alguns escritores brasileiros que se utilizaram dessa técnica foram Autran Dourado, Hilda Hilst, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa.

Um exemplo, na obra de Virgínia Woolf, de utilização do fluxo de consciência, é este trecho do seu romance (transformado em filme de grande sucesso, estrelado por Nicole Kidman) “Mrs. Dalloway”:  “Como a humanidade é louca, pensou ela ao atravessar Victoria Street. Porque só Deus sabe porque amamos tanto isto, o concebemos assim , elevando-o, construindo-o à nossa volta, derrubando-o, criando-o novamente a cada instante, mas até as próprias megeras, as mendigas mais repelentes sentadas às portas (a beberem a sua ruína) fazem o mesmo; não se podia resolver o seu caso, ela tinha a certeza, com leis parlamentares por esta simples razão: porque amam a vida. Nos olhos das pessoas, no movimento, no bulício e nos passos arrastados; no burburinho e na vozearia; os carros, os automóveis, os ônibus, os caminhões, homens-sanduíches aos encontrões, bamboleantes; bandas de música; realejos, no estrondo e no tinido e na estranha melodia de algum aeroplano por cima das nossas cabeças, era o que ela amava, a vida, Londres; este momento de Junho. Porque era em meados de Junho”.

O simples fato de Virgínia não ter utilizado esta técnica, já torna “Orlando” um dos seus livros mais acessíveis, se não for o mais. E, ainda assim... é complexíssimo. Imaginem os outros! Essa obra é classificada, geralmente, como “novela semi-biográfica”. E por que? Porque se baseia em parte da vida de Vita-Sackeville West. E quem foi essa mulher tão especial, a ponto de ser transformada em personagem de um dos livros mais bem sucedidos da escritora inglesa? Foi mais uma das paixões homossexuais de Virginia. Era lésbica, embora casada, como a autora de “Orlando”. Seu biógrafo e sobrinho Quentin Bell assegura que foi outro “amor platônico” da tia (o terceiro, conhecido, de sua vida), que como os anteriores, nada teve a ver com sexo. Será? Bem, prefiro acreditar em seu parente, que conviveu com ela e a conheceu como poucos.

O que fica claro é que nossa complexa personagem tinha profunda carência afetiva, provavelmente a raiz do seu desequilíbrio mental. O jornalista e historiador Euler França Belém, destaca, em seu excelente ensaio (“Virginia Woolf tentou ‘curar’ sua loucura pelo suicídio”) publicado na Revista Bula: “Todo mundo que lhe dava atenção recebia alguma esperança, de sexo ou afeto. Só que, afeto, tudo bem, sexo, nada”. “Orlando” é seu único livro em que expressa, de uma maneira ou de outra, sua tendência homossexual, mesmo que não levada à prática. O livro, considerado importantíssimo no estudo de gêneros, a exemplo de “Mrs. Dalloway”, também ganhou versão cinematográfica. Não foi, lá, um filme tão conhecido, mas quem o assistiu fala, geralmente, bem dele. Infelizmente, não o assisti. Por isso, só posso fiar-me na opinião alheia. Essa produção cinematográfica data de 1992 e foi estrelada pela atriz Tilda Swinton. A rainha Elizabeth I, personagem onipresente no enredo, foi vivida por Quentin Crisp; Como se observa, são estrelas relativamente desconhecidas no mundo do cinema.

A vida e a obra de Virginia Woolf são tão complexas, que eu pretendia tratar delas em um único texto, mas já escrevi o equivalente a quase um livro, mesmo fazendo abordagem elementaríssima e superficial. E olhem que ainda não esgotei sequer a metade do que considero essencial a tratar. Só não entendo porque tão poucos especialistas em Literatura se debruçaram sobre essa complexa e contraditória figura, que oscilou, nos seus 59 anos de vida, o tempo todo, entre a genialidade e a loucura. Espero que o leitor esteja apreciando tanto esta série de comentários como estou “amando” em redigi-los.


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