Muito talento e pouco
juízo
Pedro
J. Bondaczuk
O poeta Torquato Neto é
dessas figuras, digamos, “diferentes”, exóticas mesmo, no que diz respeito a
comportamento. Mas com um talento imenso, indimensionável, genial, talvez
inigualável. Viveu pouco, muito pouco, pouquíssimo, apenas 28 anos. Morreu,
todavia, não em conseqüência de alguma doença incurável ou mesmo por causa de
algum acidente, desses que ceifam, volta e meia, jovens promissores, em plena
flor da idade. Optou por dar cabo da vida, cometendo suicídio, para pasmo e
lamentação de todos os que o conheciam e que lhe prognosticavam um futuro
brilhante, em que “o céu seria o limite”. Lembro-me quando a imprensa noticiou
sua morte, embora sem enfatizar a causa, já que o tipo de ato que perpetrou é
uma espécie de tabu nas redações.
Vamos por partes.
Torquato Pereira de Araujo Neto nasceu em Teresina, Piauí, em 9 de novembro de
1944. Completaria, portanto, no final do corrente ano, setenta anos de idade.
Completaria... mas... Além de poeta, foi jornalista, letrista de música
popular, ator e o escambau. Em termos de arte e de comunicação, fez um, pouco
de tudo. Foi, sobretudo, expoente da contracultura brasileira em fins dos anos
60 e início dos 70, em uma época muito dura para todos nós, por causa da ditadura
militar. Destacou-se em tudo o que fez. Na poesia, por exemplo, não se limitou
a compor, mas fez dessa arte estilo de vida. A esse propósito, escreveu:
“Escute, meu chapa, um poeta não se faz com versos. E o risco é estar sempre a
perigo, sem medo. É inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades
pelo menos maiores. É destruir a linguagem e explodir com ela. Quem não se
arrisca, não pode berrar”. E Torquato se arriscou. E muito...
Filho do defensor
público Hélio da Rocha Nunes e da professora primária de Teresina, Maria Salomé
Nunes, o genial (e genioso) adolescente mudou-se, aos 16 anos, para Salvador,
onde fez amizades que durariam pelo resto de sua (curta) vida. Estudou, por
exemplo, no Colégio Nossa Senhora da Vitória com Gilberto Gil, um dos seus
parceiros preferenciais na MPB. Estreitou relações com Caetano Veloso, Gal
Costa e Maria Bethânia, com os quais também trabalhou, além de atuar como
assistente de ninguém menos do que Glauber Rocha, no filme “Barravento”. Não
tardou para que Salvador se tornasse muito pequena para seu talento e suas
ambições. Assim, aos 18 anos de idade, em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro,
onde viria a se consagrar, a se decepcionar da arte, dos amigos e de tudo e a
dar cabo da vida.
Na Cidade Maravilhosa,
sua intenção era a de cursar Jornalismo. Nunca chegou a se formar, mesmo tendo
trabalhado em grandes jornais cariocas, como Correio da Manhã, Jornal dos
Sports e Última Hora. Neste último, assinou uma coluna que ficou muito famosa,
intitulada “Geléia geral”, em que comentava de tudo o que se referisse a arte
de vanguarda, quer Literatura, quer cinema, música, artes plásticas e
comportamento. É considerado, com justiça, como um dos mentores do
“Tropicalismo”, movimento do qual escreveu uma espécie de “Breviário”. Como
letrista, foi parceiro dos maiores astros da MPB da época, em composições hoje
consideradas como “clássicos”, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Luís Melodia,
Jards Macalé, João Bosco, Sérgio Britto, Edu Lobo, Nonato Buzar, Geraldo
Azevedo, Geraldo Vandré, Capinam e Roberto Menescal, entre tantos outros.
Cataloguei pelo menos 45 composições de sua autoria de enorme sucesso.
Como um sujeito tão
criativo e aparentemente lúcido pôde ter a péssima idéia de dar cabo da vida?
Não creio que haja justificativas minimamente lógicas. É verdade que o ambiente
sombrio, diria “claustrofóbico” do País, naqueles “anos de chumbo”, muito
contribuiu para isso. Após a edição do famigerado AI5, por exemplo,
oportunidade em que seus amigos Gilberto Gil e Caetano Veloso chegaram a ser
exilados, Torquato decidiu “respirar” outros ares menos pestilentos. Viajou
pela Europa e Estados Unidos e chegou a residir, por pouco tempo, em Londres.
Ao regressar ao Rio, o ambiente não havia melhorado. Pelo contrário. Além
disso, o jovem poeta viu-se às voltas
com o alcoolismo, do qual não conseguiu se livrar. Rompeu muitas e
antigas amizades, por motivos banais e não raro sem causa alguma. Torquato Neto
cometeu suicídio um dia após completar 28 anos, ou seja, em 10 de novembro de
1972.
Fez a bobagem após
regressar de uma festa. Chegou tarde em casa, andando de mansinho para não
despertar a esposa e o filho Thiago, de dois anos. Dirigiu-se para o banheiro,
abriu o registro de gás do chuveiro e... partiu para o desconhecido. Deixou,
como todo suicida, um bilhete de despedida, nos seguintes termos: "FICO.
Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande
múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua
louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em
que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e
enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo que FICO
sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com
um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que
eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o
favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar". A pessoa que Torquato não queria que
“sacudissem demais” era seu filho. Thiago de Araújo Nunes viria a se tornar
piloto de uma companhia aérea brasileira de grande prestígio. Não sei dizer se
ainda continua na ativa. Presumo que já tenha se aposentado.
A quem quiser conhecer
mais sobre a vida e a obra de Torquato Neto, recomendo que compre uma das
tantas biografias escritas a seu respeito. Há algumas muito boas e completas.
Se me pedissem, todavia, uma definição bastante sucinta sobre essa
personalidade da nossa contracultura, expoente e um dos criadores do
Tropicalismo, eu diria, sem fugir ao respeito, simplesmente: “Foi um gênio de
talento incomensurável, mas de pouco ou nenhum juízo”. Imagino o quanto mais
ele poderia ter feito por nossa arte e cultura se estivesse vivo e prestes a
completar setenta anos de vida. Mas...
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