Thursday, October 30, 2014

Conquistas insuficientes

Pedro J. Bondaczuk

As mulheres conquistaram, ao longo do recém findo século XX, em várias partes do mundo, legítimos direitos que, por razões várias, sempre, e invariavelmente, em qualquer tempo ou lugar, foram (e em vastas regiões da Terra continuam sendo) desrespeitados. Derrubaram barreiras, superaram preconceitos, ocuparam espaços e desbravaram o caminho da igualdade, da liberdade e da responsabilidade para as gerações futuras. Trata-se, na verdade, não somente de uma expressiva vitória feminina, mas de toda a humanidade.

O objetivo das mulheres, nessa luta muitas vezes inglória, repleta de obstáculos aparentemente intransponíveis e cercada de incompreensões de toda a sorte, destaque-se, nunca foi hegemônico. Elas  jamais pretenderam (e nem pretendem) apenas inverter os papéis tradicionais. Não querem passar de dominadas a dominadoras.

Desejam, isto sim, a posição de parceiras, em absoluto pé de igualdade com os homens. Exigem que seus direitos, consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que a quase totalidade dos países que integram a organização se comprometeram a acatar e a defender, sejam respeitados.

Não é, no entanto, o que acontece, mesmo nas sociedades consideradas mais avançadas, nos aspectos social, jurídico, econômico, cultural, etc., que integram o seleto rol do que se convencionou chamar de "Primeiro Mundo". O que dizer, então, de Estados que pararam no tempo, atrasados em todos os sentidos, alguns ainda vivendo virtualmente na Idade da Pedra, no que diz respeito aos direitos humanos?

Mais de dois terços das mulheres do mundo continuam sendo tratadas como subalternas, como seres inferiores, como "propriedades masculinas", vítimas de toda a sorte de abusos, de discriminações, de agressões, de humilhações, etc, sem que as autoridades competentes movam uma só palha para pôr fim a essa barbárie.

Um texto da jornalista britânica Evelyn Leopold, da agência de notícias Reuter, distribuído a todos os jornais assinantes dos serviços noticiosos dessa empresa espalhados pelo mundo em 30 de agosto de 1995, véspera da abertura da IV Conferência Mundial das Mulheres, realizada em Pequim, dá uma pálida idéia do que acontece.

Diz a referida matéria: "Quase todos os governos do mundo têm se pronunciado contra o estupro, espancamento, escravidão sexual, tortura, mutilação genital feminina e infanticídio feminino. Mas o abuso de mulheres e garotas, freqüentemente não registrado, é praticado atrás dos altos muros das prisões, nos confinamentos do lar, ou com a anuência conferida pelo costume local, segundo documentos da ONU".

E a jornalista prossegue: "E ao longo de todas as épocas, o estupro tem sido visto como um prêmio justo a combatentes vitoriosos de uma guerra. 'A violência persegue a vida da mulher na paz e na guerra', diz um recente estudo feito pelo Programa de Desenvolvimento da ONU sobre as mulheres. 'E a maioria das leis é inadequada para o combate à violência --- a menos que os atuais valores sociais e culturais mudem'.

Ou seja, a mentalidade dominante entre os povos, neste início do Terceiro Milênio da Era Cristã, continua, na essência, a mesma dos primórdios da civilização. Fatos são muito mais enfáticos do que os bem elaborados discursos dos vários governos e organizações, que tentam negar o que não pode ser negado. E estes são terríveis, muitas vezes escabrosos, de tal sorte que muitas vezes levam pessoas inteligentes, sensíveis e dotadas de bom senso a questionar a civilização, da forma como se apresenta hoje, senão a própria racionalidade humana.

O animal tido como o "rei da criação" age, em relação à sua parceira, como nem as mais broncas feras o fazem em relação às fêmeas da espécie.  As mulheres não querem nada que não seja o seu legítimo direito à igualdade e dignidade. Aspiram, acima de tudo, à cooperação permanente e igualitária, à soma de recursos, esforços e inteligências, com os parceiros masculinos, em busca da harmonia: no lar, na sociedade e na convivência pacífica e civilizada entre povos e nações. Ou seja, o seu modo de pensar e de agir não é (e nem nunca foi), em nada parecido com o comportamento do homem, de domínio e de sujeição.

Essa "guerra santa", todavia, está longe de acabar. Pelo contrário, está praticamente no início. Há, ainda, um longo e penoso caminho a percorrer. As mulheres obtiveram, não há como negar, conquistas marcantes e históricas, em especial a partir da segunda metade do século passado, entre as quais se destacam o direito ao voto, o acesso à educação em todos os níveis, o ingresso no mercado de trabalho, assumindo até tarefas sempre tidas e havidas como eminentemente masculinas, etc.

Contudo, seguem às voltas com os mais variados tipos de violência: no lar, no trabalho e na sociedade. São vítimas, na maioria das vezes silenciosas e indefesas, de agressões físicas, sexuais e psicológicas de todos os tipos e intensidades. E de outras formas de violência bem mais sutis, embora não menos perversas, como o controle da estética feminina pela óptica masculina, a desvalorização no mercado de trabalho (recebendo salários sempre menores do que os homens que exercem as mesmas funções), as dificuldades de ascensão a postos de comando (nas empresas e na política) e a dupla jornada, entre outras tantas.

Como se nota, ainda não é momento para comemorações. Há muito a ser conquistado. Há um longo e espinhoso caminho a percorrer.  Vida sem violência, para qualquer pessoa (e, claro, para a mulher também), não é um prêmio, uma dádiva ou um excepcional ato de generosidade masculino. Trata-se de inalienável e sagrado direito, reconhecido formalmente por todos os países integrantes da ONU, mas que continua sendo ignorado, e portanto violado em todas as partes do mundo, na maior parte das vezes impunemente.

Prólogo do livro “Guerra dos Sexos”, Pedro J. Bondaczuk, 1999, inédito.


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