Complexidade a toda a
prova
Pedro
J. Bondaczuk
O romance “Orlando”, de
Virgínia Woolf, que muitos classificam como “novela semibiográfica”, é um dos
livros mais complexos e intrigantes que já li. Até hoje, mesmo após várias
releituras, não tenho certeza se entendi a verdadeira mensagem que a autora
quis transmitir. Aliás, fico em dúvida, até, se pretendeu transmitir alguma.
Todavia, declaro, de público, que gostei do que li, embora com inúmeras
interrogações em minha mente. Achei essa obra até mais complexa do que
“Ulysses”, de James Joyce, que volta e meia releio e não consigo esclarecer
todas as dúvidas que ela me suscitou e suscita. Bem, a culpa, provavelmente,
não é de nenhum desses dois escritores. Não é nem de James Joyce e nem de
Virgínia Woolf. É dessa minha educação sumamente cartesiana, adstrita
exclusivamente à lógica.
O enredo desse romance
(ou novela semibiográfica, como queiram), grosso modo, pode ser resumido em
poucas palavras (caso não se queira deter em nuances, que são, no final das
contas, seu “tempero”). Orlando é um adolescente de 16 anos de idade, nascido
na Inglaterra contemporânea. Não se sabe, porém, por qual sortilégio, quando de
sua estadia na Turquia, subitamente muda de sexo: transforma-se em mulher. O
pitoresco é que nem ele, que da noite para o dia virou ela, nem as pessoas que
conviviam com esse estranhíssimo personagem, se mostram surpresos com essa
transformação. Mas não é só isso que “bagunça” a cabeça do leitor (como se isso
não bastasse). A forma como Virgínia trabalha com o tempo é mais surreal do que
as mais bizarras histórias de Franz Kafka, tido e havido como o mestre do
absurdo.
Orlando, por exemplo,
vive 350 anos, porquanto é protegido da rainha Elizabeth I, que reinou três
séculos e meio atrás e a autora acompanha tanto a personagem por todo esse
período, quanto a história da Inglaterra. Esse trato do tempo é que causa
enorme confusão, até maior do que a mudança de sexo do jovem personagem. Vejam
o nó que a escritora dá na cabeça do leitor. No início da narrativa, Orlando
tem 16 anos. Ao longo do enredo, ela descreve 350 anos de sua vida. Mas... para
complicar tudo, o personagem, que era masculino, mas que se torna feminino –
sem ter feito nenhuma cirurgia de mudança de sexo, tão comum nos dias atuais –
termina com 36 anos!!! Mas como?! Não tentem, como eu tentei, ler esse livro à
luz da lógica. Não é o seu forte.
Concordo com um dos
resenhadores deste romance (cujo nome não consegui apurar), quando ele (ou ela)
o classifica desta maneira: “A história deste homem, que após anos vivendo como
tal, acorda de um sono profundo e se vê transformado em mulher – sem nenhum
assombro, diga-se de passagem – é uma história sobre amor, literatura,
igualdade de gêneros, adequação social, liberdade e memórias”. Reproduzo dois
pequenos trechos de “Orlando”, que me chamaram, particularmente, a atenção, por
serem lógicos, além de brilhantes, e que satisfazem, portanto, minha mente
cartesiana.
O primeiro refere-se à
memória, e diz: “A memória é uma costureira e uma costureira caprichosa. A
memória faz a agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo,
para lá e para cá. Não sabemos o que vem a seguir ou o que virá depois. Assim,
o movimento mais comum do mundo, como o de sentar-se à mesa e puxar o tinteiro,
pode agitar mil fragmentos díspares e desconexos, ora brilhantes, ora
embaçados, pendendo, flutuando, mergulhando, tremulando como a roupa branca de
uma família de 14 pessoas numa corda ao vento”.
O segundo trecho que me
empolgou, expressa o inquestionável amor que Virgínia Woolf sempre demonstrou,
desde muito criança, pela Literatura. Pudera! Praticamente toda sua família,
por parte de pai, era constituída por escritores ou por pessoas que de alguma
forma eram ligadas às letras. Ela escreve, a certa altura: “Mas o pior estava
por vir. Pois, uma vez que a doença da leitura se instale no organismo,
enfraquece-o, tornando-o presa fácil desse outro flagelo que habita no tinteiro
e apodrece na pena. O infeliz dedica-se a escrever”. Claro que no fundo, no
fundo, ela não considerava esse talento, não tão comum assim, como uma espécie
de “doença”. Todo escritor que se preze, algum dia, já classificou sua
habilidade de “maldição”. Todavia não conheço um único deles que, tendo a
oportunidade de abrir mão dela, o tenha feito.
Ainda bem que este
espaço é destinado a comentários de livros, autores e aspectos vários de
literatura e não a resenhas. Confesso que não saberia resenhar adequadamente
“Orlando”. Não, pelo menos, no meu estilo didático e, sobretudo, apegado,
inflexivelmente, ao caráter cartesiano que caracteriza o que penso, sou e
escrevo. Como encontrar lógica onde o objetivo é, justamente, a sua
revolucionária violação? Como entender os sentimentos e reações femininos se,
por razões óbvias, por ser homem, não sei ou não tenho certeza como eles são?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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