Crime
estimulado pela impunidade
Pedro J.
Bondaczuk
Se na maior parte do mundo, as estatísticas sobre
espancamento de mulheres são escassas e incompletas, no Brasil há uma profusão
delas, o que mostra que essa prática é bastante difundida no País. Claro que
uma quantidade ínfima, irrisória dos casos, chega ao conhecimento das
autoridades. Isso, pelas mesmas razões da maioria dos países: medo ou vergonha.
Por exemplo, a Comissão Parlamentar de Inquérito,
instalada no Congresso Nacional em 1992, para investigar a violência contra a
mulher, apurou que, no Brasil, a cada 4 minutos, acontece um caso de agressão
física contra pessoas do sexo feminino. Todavia, aqui, como em qualquer parte,
a impunidade predomina, o que serve de incentivo para o aumento do delito.
Por exemplo, dos 19.284 boletins de ocorrência
policial que registraram lesão corporal nas mulheres, no ano de 1994, menos de
5 mil se transformaram em inquéritos. E dos que chegaram ao Judiciário, a
esmagadora maioria não deu em nada, ou porque as vítimas retiraram a queixa, ou
por decisões desastradas, e logicamente injustas, dos juizes aos quais couberam
essas causas.
Mas as escassas e subestimadas estatísticas a
respeito mostram, ainda assim, que a violência contra as mulheres, na maioria
dos casos no recesso de seu próprio lar, continua crescendo. Se forem
considerados apenas maus tratos, agressões físicas e ameaças, excluindo os
crimes sexuais, são registrados, em média, em Campinas, atualmente, 12 casos
diários dessa natureza. Isto, evidentemente, os notificados. E estes
representam apenas em torno de 10% do número real de delitos.
Em 1999, foram registrados 3.529 boletins de
ocorrência e 1.097 termos circunstanciais de ocorrência na cidade, sobre
espancamentos de mulheres, com graus variados de lesões corporais. Desse total,
70% dos casos se verificaram dentro da própria família, o que atesta que é
indispensável e urgente uma mudança de mentalidade por parte da população
masculina, que precisa se conscientizar que pessoas, não importa o seu sexo,
não têm dono. Todas têm, ao menos conceitualmente, os mesmos direitos e
deveres. É necessário, porém, que isso deixe o plano meramente teórico e se
torne realidade prática.
Dados, posto que esparsos e, reiteramos, parciais e
incompletos, é que não faltam. Por exemplo, entre 1999 e 2001, o número de
queixas de vítimas de agressão, nas Delegacias da Mulher do Estado de São
Paulo, cresceu 43,7%. As ocorrências chegam a 30 mil por mês. Isso não
significa, necessariamente, um aumento nesse tipo de violência. "O que
mais aumentou foi a coragem das mulheres de reagir", ressaltou uma
advogada que lida com esses casos. O
aumento da média mensal de agressões, desde 1999, é de 87,4%.
Para a Organização Mundial de Saúde, a violência
doméstica, além de se constituir em crime, é um problema de saúde. A entidade
constata que mulheres agredidas constantemente perdem um ano de vida saudável a
cada cinco anos. Pesquisa da Organização Mundial de Saúde mostra que uma, em
cada três moradoras de cidade de São Paulo, é vítima da violência.
E o que diz a legislação brasileira a respeito? A lei caracteriza o espancamento como crime
de lesão corporal, conforme o Artigo 129 do Código Penal. A pena, no entanto,
depende da gravidade da ocorrência. Na lesão corporal de natureza leve, ou
seja, quando se ofende a integridade corporal e a saúde da vítima, a pena prevista é de até um ano de reclusão.
Dificilmente, no entanto, o agressor condenado cumpre essa sentença. Em geral,
ela é transformada em multa, que chega a ser risível, de tão irrisória.
Na lesão corporal de natureza grave, quando o
agressor causa incapacidade para ocupações usuais por mais de 30 dias na
vítima; coloca em perigo sua vida; debilita permanentemente membro, sentido ou
função ou acelera parto, a pena é de um a cinco anos de reclusão. E na de
natureza gravíssima, a que causa deformidade permanente, aborto, incapacidade
permanente para o trabalho, enfermidade incurável ou perda ou inutilização de
membro, sentido ou função, a pena prevista pelo Código Penal é de dois a oito
anos de reclusão.
Pesquisas nacionais, claramente subestimadas,
revelam que 23% das mulheres brasileiras são sujeitas à violência doméstica. E
sessenta por cento das agressões, no Brasil, são cometidas pelos próprios
parceiros das vítimas, maridos ou namorados, o que mostra que o perigo maior
nem sempre está nas ruas, mas na maioria das vezes dentro da própria casa.
É comum ouvir ativistas de movimentos de mulheres no
Brasil dizerem que a violência doméstica é um fenômeno "perversamente
democrático". Está presente em famílias de todas as classes sociais, graus
culturais e faixas de renda. Pesquisas revelam que a maioria dos casos se
verifica na classe média, onde as ocorrências chegam a 23% do total. As vítimas
ostentam razoável padrão de renda e não raro têm instrução universitária.
Ironicamente, nos dois extremos da pirâmide social, ou seja, a classe alta e a
muito pobre, o registro de agressões é de 6% do total.
Em 1998, uma pesquisa da ONU com o Ministério da
Saúde brasileiro mostrou que as delegacias da mulher, que existem em apenas 6%
dos municípios do País, registraram, em 1992, 205 mil agressões. Hoje, o número
de casos pode ser, tranqüilamente, multiplicado por dez, que não haverá nenhum
exagero.
As pesquisadoras Heleieth Saffiotti e Suely Souza
Almeida, ambas da PUC-São Paulo, analisaram boletins de ocorrência de 1994 nas
delegacias da mulher de 22 capitais brasileiras. Oitenta e um e meio por cento
das queixas foram de lesão corporal dolosa. Ou seja: pancada. Desses processos,
70% foram arquivados! E de cada dez casos julgados, em um houve a absolvição,
pura e simples, do agressor.
Apenas 2% dos homens acusados de agredir mulheres
são punidos no Brasil. Em 98% dos casos, a apuração não vai adiante: as vítimas
retiram as acusações, os agressores não são encontrados ou acabam inocentados.
O índice de desistência chega a 70% dos casos no País. Saffiotti constata:
"Muitas vítimas estabelecem um vínculo de dependência emocional com o
agressor. Não é fácil romper". Ou seja, é a mesma realidade constatada nos
Estados Unidos e na Europa Ocidental.
A impunidade no Brasil, nos casos de violência
contra a mulher, ainda é escandalosa e ficou evidenciada num caso de
repercussão internacional. Em 30 de abril deste ano, o País foi condenado, pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados
Americanos, com sede em Washington, por fazer vista grossa a um caso gravíssimo
de agressão.
O episódio que ilustrou a atitude brasileira em
relação aos direitos das mulheres foi o de Maria da Penha Maia Fernandes, que
foi atingida por um tiro de revólver disparado pelo homem com o qual vivia
maritalmente, o economista Heredia Viveiros, em Fortaleza, no Ceará. Em
conseqüência da tentativa de homicídio, a vítima ficou paraplégica. O agressor
foi absolvido pela Justiça. Ou seja, causou lesão corporal de natureza
gravíssima e escapou impune, sem ser condenado, sequer, a ressarcir a agredida,
assegurando o seu sustento, que era o mínimo que teria de fazer.
Um fator que dificulta a punição dos agressores,
como Herédia Viveiros e milhares de outros, é a legislação brasileira. Em
dezembro de 1995, houve modificação na forma de julgamento dos crimes com pena
de até um ano de prisão, como os de ameaça e de lesão corporal leve. Mais rápidos,
os processos procuram facilitar a conciliação e podem ser aplicados para réus
primários.
Quando há acordo, o acusado é submetido a uma pena
alternativa, geralmente o pagamento de uma cesta básica. "O agressor ri da
mulher quando recebe a condenação", diz a coordenadora das Delegacias de
Direitos da Mulher, Maria Inês Valente. "Em uma segunda agressão, a mulher
não tem nenhum ânimo para passar pelo mesmo vexame", conclui. E sequer
notifica o delito.
(Do
livro “Guerra dos Sexos”, Pedro J. Bondaczuk, 1999, inédito)
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