Thursday, October 09, 2014

Crime estimulado pela impunidade

Pedro J. Bondaczuk

Se na maior parte do mundo, as estatísticas sobre espancamento de mulheres são escassas e incompletas, no Brasil há uma profusão delas, o que mostra que essa prática é bastante difundida no País. Claro que uma quantidade ínfima, irrisória dos casos, chega ao conhecimento das autoridades. Isso, pelas mesmas razões da maioria dos países: medo ou vergonha.

Por exemplo, a Comissão Parlamentar de Inquérito, instalada no Congresso Nacional em 1992, para investigar a violência contra a mulher, apurou que, no Brasil, a cada 4 minutos, acontece um caso de agressão física contra pessoas do sexo feminino. Todavia, aqui, como em qualquer parte, a impunidade predomina, o que serve de incentivo para o aumento do delito.

Por exemplo, dos 19.284 boletins de ocorrência policial que registraram lesão corporal nas mulheres, no ano de 1994, menos de 5 mil se transformaram em inquéritos. E dos que chegaram ao Judiciário, a esmagadora maioria não deu em nada, ou porque as vítimas retiraram a queixa, ou por decisões desastradas, e logicamente injustas, dos juizes aos quais couberam essas causas.

Mas as escassas e subestimadas estatísticas a respeito mostram, ainda assim, que a violência contra as mulheres, na maioria dos casos no recesso de seu próprio lar, continua crescendo. Se forem considerados apenas maus tratos, agressões físicas e ameaças, excluindo os crimes sexuais, são registrados, em média, em Campinas, atualmente, 12 casos diários dessa natureza. Isto, evidentemente, os notificados. E estes representam apenas em torno de 10% do número real de delitos.

Em 1999, foram registrados 3.529 boletins de ocorrência e 1.097 termos circunstanciais de ocorrência na cidade, sobre espancamentos de mulheres, com graus variados de lesões corporais. Desse total, 70% dos casos se verificaram dentro da própria família, o que atesta que é indispensável e urgente uma mudança de mentalidade por parte da população masculina, que precisa se conscientizar que pessoas, não importa o seu sexo, não têm dono. Todas têm, ao menos conceitualmente, os mesmos direitos e deveres. É necessário, porém, que isso deixe o plano meramente teórico e se torne realidade prática.

Dados, posto que esparsos e, reiteramos, parciais e incompletos, é que não faltam. Por exemplo, entre 1999 e 2001, o número de queixas de vítimas de agressão, nas Delegacias da Mulher do Estado de São Paulo, cresceu 43,7%. As ocorrências chegam a 30 mil por mês. Isso não significa, necessariamente, um aumento nesse tipo de violência. "O que mais aumentou foi a coragem das mulheres de reagir", ressaltou uma advogada que lida com esses casos.  O aumento da média mensal de agressões, desde 1999, é de 87,4%.

Para a Organização Mundial de Saúde, a violência doméstica, além de se constituir em crime, é um problema de saúde. A entidade constata que mulheres agredidas constantemente perdem um ano de vida saudável a cada cinco anos. Pesquisa da Organização Mundial de Saúde mostra que uma, em cada três moradoras de cidade de São Paulo, é vítima da violência.

E o que diz a legislação brasileira a respeito?  A lei caracteriza o espancamento como crime de lesão corporal, conforme o Artigo 129 do Código Penal. A pena, no entanto, depende da gravidade da ocorrência. Na lesão corporal de natureza leve, ou seja, quando se ofende a integridade corporal e a saúde da vítima,  a pena prevista é de até um ano de reclusão. Dificilmente, no entanto, o agressor condenado cumpre essa sentença. Em geral, ela é transformada em multa, que chega a ser risível, de tão irrisória.

Na lesão corporal de natureza grave, quando o agressor causa incapacidade para ocupações usuais por mais de 30 dias na vítima; coloca em perigo sua vida; debilita permanentemente membro, sentido ou função ou acelera parto, a pena é de um a cinco anos de reclusão. E na de natureza gravíssima, a que causa deformidade permanente, aborto, incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade incurável ou perda ou inutilização de membro, sentido ou função, a pena prevista pelo Código Penal é de dois a oito anos de reclusão.

Pesquisas nacionais, claramente subestimadas, revelam que 23% das mulheres brasileiras são sujeitas à violência doméstica. E sessenta por cento das agressões, no Brasil, são cometidas pelos próprios parceiros das vítimas, maridos ou namorados, o que mostra que o perigo maior nem sempre está nas ruas, mas na maioria das vezes dentro da própria casa.

É comum ouvir ativistas de movimentos de mulheres no Brasil dizerem que a violência doméstica é um fenômeno "perversamente democrático". Está presente em famílias de todas as classes sociais, graus culturais e faixas de renda. Pesquisas revelam que a maioria dos casos se verifica na classe média, onde as ocorrências chegam a 23% do total. As vítimas ostentam razoável padrão de renda e não raro têm instrução universitária. Ironicamente, nos dois extremos da pirâmide social, ou seja, a classe alta e a muito pobre, o registro de agressões é de 6% do total.

Em 1998, uma pesquisa da ONU com o Ministério da Saúde brasileiro mostrou que as delegacias da mulher, que existem em apenas 6% dos municípios do País, registraram, em 1992, 205 mil agressões. Hoje, o número de casos pode ser, tranqüilamente, multiplicado por dez, que não haverá nenhum exagero.

As pesquisadoras Heleieth Saffiotti e Suely Souza Almeida, ambas da PUC-São Paulo, analisaram boletins de ocorrência de 1994 nas delegacias da mulher de 22 capitais brasileiras. Oitenta e um e meio por cento das queixas foram de lesão corporal dolosa. Ou seja: pancada. Desses processos, 70% foram arquivados! E de cada dez casos julgados, em um houve a absolvição, pura e simples, do agressor.

Apenas 2% dos homens acusados de agredir mulheres são punidos no Brasil. Em 98% dos casos, a apuração não vai adiante: as vítimas retiram as acusações, os agressores não são encontrados ou acabam inocentados. O índice de desistência chega a 70% dos casos no País. Saffiotti constata: "Muitas vítimas estabelecem um vínculo de dependência emocional com o agressor. Não é fácil romper". Ou seja, é a mesma realidade constatada nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.

A impunidade no Brasil, nos casos de violência contra a mulher, ainda é escandalosa e ficou evidenciada num caso de repercussão internacional. Em 30 de abril deste ano, o País foi condenado, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos, com sede em Washington, por fazer vista grossa a um caso gravíssimo de agressão.

O episódio que ilustrou a atitude brasileira em relação aos direitos das mulheres foi o de Maria da Penha Maia Fernandes, que foi atingida por um tiro de revólver disparado pelo homem com o qual vivia maritalmente, o economista Heredia Viveiros, em Fortaleza, no Ceará. Em conseqüência da tentativa de homicídio, a vítima ficou paraplégica. O agressor foi absolvido pela Justiça. Ou seja, causou lesão corporal de natureza gravíssima e escapou impune, sem ser condenado, sequer, a ressarcir a agredida, assegurando o seu sustento, que era o mínimo que teria de fazer.

Um fator que dificulta a punição dos agressores, como Herédia Viveiros e milhares de outros, é a legislação brasileira. Em dezembro de 1995, houve modificação na forma de julgamento dos crimes com pena de até um ano de prisão, como os de ameaça e de lesão corporal leve. Mais rápidos, os processos procuram facilitar a conciliação e podem ser aplicados para réus primários.

Quando há acordo, o acusado é submetido a uma pena alternativa, geralmente o pagamento de uma cesta básica. "O agressor ri da mulher quando recebe a condenação", diz a coordenadora das Delegacias de Direitos da Mulher, Maria Inês Valente. "Em uma segunda agressão, a mulher não tem nenhum ânimo para passar pelo mesmo vexame", conclui. E sequer notifica o delito.


(Do livro “Guerra dos Sexos”, Pedro J. Bondaczuk, 1999, inédito)


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