Wednesday, October 15, 2014

Mutilações sexuais


Pedro J. Bondaczuk


Uma das práticas mais bárbaras, desumanas e absurdas, vitimando as mulheres, sob diversos pretextos, tanto religiosos quanto culturais, é a da circuncisão feminina. Trata-se da chamada "excisão". Consiste, a grosso modo, na extirpação do clitóris, e em alguns casos dos lábios vaginais, das meninas ainda em tenra idade.

O objetivo, de acordo com seus defensores (líderes religiosos que ditam regras de conduta aos fiéis ou pseudo guardiães de tradições tribais), seria o de "arrefecer o desejo sexual feminino", garantindo, dessa forma, a irrestrita fidelidade das esposas aos seus maridos.

É inconcebível, no entanto, que esse tipo de atitude sobreviva, em pleno século XXI. O assunto, aliás, foi tratado, de passagem, na IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em 1995, em Pequim, mas não se definiu, na ocasião, qualquer tipo de estratégia para coibir esse tipo de mutilação.

O tema, levantado por delegações ocidentais, foi prontamente "abafado" por delegados islâmicos e sequer foi mencionado na declaração conjunta, no encerramento daquele encontro. Mas não se trata, como alguns desavisados ou mal informados possam supor, de prática restrita a uma ou outra tribo primitiva, perdida em rincões remotos da África ou da Ásia, catalogável, somente, no rol das curiosidades aberrantes ou dos "costumes exóticos" que resistem ao tempo e à globalização.

Envolve, isto sim, vários milhões de indefesas meninas, condenadas a jamais experimentarem os sadios e instintivos prazeres do sexo, além de se submeterem aos inúteis e cruéis sofrimentos que lhes são infligidos e aos profundos riscos à saúde a que ficam expostas.

No Sudão, por exemplo, quase 80% das mulheres são submetidas regularmente à circuncisão feminina. As 20% restantes, são as que vivem no sul do país, onde predomina o cristianismo e onde a prática foi há muito abolida. Em outros países africanos e asiáticos, no entanto, as taxas (posto que alegadamente menores), são igualmente bastante elevadas, embora não se tenha um levantamento preciso, já que as famílias que praticam a excisão consideram o tema como assunto estritamente particular, e se recusam a falar a respeito.

Oficialmente, esse tipo de mutilação sexual é ilegal, até mesmo no Sudão, submetido às leis islâmicas ("Sharia"), que não prevêem, a bem da verdade (nem no Alcorão e nem em qualquer outro texto religioso), esse absurdo procedimento.

Todavia, a pressão tanto social (tradição), quanto religiosa, mantém mais viva do que nunca essa aberração, para a infelicidade das mulheres, forçadas a se submeter a mais esta (de tantas) violação aos seus direitos fundamentais. E as autoridades, simplesmente, fazem "vistas grossas". A percentagem sudanesa de circuncisão feminina, destaque-se, é uma das mais elevadas da África, pelo menos se forem levados em conta os esparsos dados disponíveis a respeito.

A excisão é, basicamente, de dois tipos: a chamada "faraônica" e a "sunna". No primeiro caso, ocorre o corte dos lábios vaginais e do clitóris. Extirpados estes, a vagina é costurada, deixando-se apenas um estreito canal para a saída do fluxo menstrual.

Trata-se de mutilação genital que é, além de extremamente dolorosa,  perigosa à saúde da mulher, pois na maioria dos casos é praticada sem que se respeitem as mais primárias normas cirúrgicas de assepsia. Pode provocar, por isso, graves infecções, agudas ou crônicas, na vítima, além de sérias complicações no parto, levando, não raro, a parturiente à  morte. Na circuncisão "sunna", o procedimento é bem menos agressivo, do ponto de vista cirúrgico,  pois apenas o clitóris  é removido.

Estimativas indicam que a excisão é praticada em 20 milhões de meninas por ano, em 25 países africanos --- entre os quais estão Somália, Egito, Etiópia, Sudão, Djibouti, Benin e Costa do Marfim ---, além de vários outros da Ásia, notadamente o Afeganistão dos temíveis talibans. Por exemplo, cerca de 3.600 garotinhas e adolescentes egípcias, em média, sofrem, a cada dia, o corte do clitóris, geralmente realizado por um cirurgião ou, na ausência deste (o que é muito freqüente), por um barbeiro.

A prática, tolerada pelo governo do Egito --- que prefere não se imiscuir em assuntos dessa natureza, alegando se tratar de questão estritamente particular --- envolve 98% das famílias das regiões rurais e 70% das zonas urbanas, conforme dados do Ministério da Saúde desse país.

Os ulemás (doutores em religião) da prestigiosa mesquita de Al-Azhar, no Cairo, por sua vez, acreditam que Maomé preconizou a excisão, para "impedir que as mulheres fiquem excitadas permanentemente", embora os que conhecem a fundo o islamismo saibam que o profeta jamais escreveu uma só linha dando essa radical e desumana orientação.

Mas não são apenas os povos islâmicos que defendem, incentivam ou toleram a circuncisão feminina. O papa Chenuda III, patriarca da Igreja Copta (cristãos do Egito), por exemplo, nega-se a proibir a excisão aos seus fiéis, ou mesmo a fazer qualquer tipo de  comentário a respeito. "Trata-se de assunto particular, no qual eu me recuso a intervir", argumentou, quando questionado, recentemente, por jornalistas ocidentais, sobre a controvertida questão. E na maioria dos países africanos, onde a prática é largamente disseminada, a religião professada é a animista, o que prova que a circuncisão feminina não é nenhum dogma religioso especial.


Do livro “Guerra dos Sexos”, Pedro J. Bondaczuk, 1999, inédito


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