Conquistas
insuficientes
Pedro J.
Bondaczuk
As mulheres conquistaram, ao longo do recém findo
século XX, em várias partes do mundo, legítimos direitos que, por razões
várias, sempre, e invariavelmente, em qualquer tempo ou lugar, foram (e em
vastas regiões da Terra continuam sendo) desrespeitados. Derrubaram barreiras,
superaram preconceitos, ocuparam espaços e desbravaram o caminho da igualdade,
da liberdade e da responsabilidade para as gerações futuras. Trata-se, na
verdade, não somente de uma expressiva vitória feminina, mas de toda a
humanidade.
O objetivo das mulheres, nessa luta muitas vezes
inglória, repleta de obstáculos aparentemente intransponíveis e cercada de
incompreensões de toda a sorte, destaque-se, nunca foi hegemônico. Elas jamais pretenderam (e nem pretendem) apenas
inverter os papéis tradicionais. Não querem passar de dominadas a dominadoras.
Desejam, isto sim, a posição de parceiras, em
absoluto pé de igualdade com os homens. Exigem que seus direitos, consagrados
na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que a quase
totalidade dos países que integram a organização se comprometeram a acatar e a
defender, sejam respeitados.
Não é, no entanto, o que acontece, mesmo nas
sociedades consideradas mais avançadas, nos aspectos social, jurídico,
econômico, cultural, etc., que integram o seleto rol do que se convencionou
chamar de "Primeiro Mundo". O que dizer, então, de Estados que
pararam no tempo, atrasados em todos os sentidos, alguns ainda vivendo
virtualmente na Idade da Pedra, no que diz respeito aos direitos humanos?
Mais de dois terços das mulheres do mundo continuam
sendo tratadas como subalternas, como seres inferiores, como "propriedades
masculinas", vítimas de toda a sorte de abusos, de discriminações, de
agressões, de humilhações, etc, sem que as autoridades competentes movam uma só
palha para pôr fim a essa barbárie.
Um texto da jornalista britânica Evelyn Leopold, da
agência de notícias Reuter, distribuído a todos os jornais assinantes dos
serviços noticiosos dessa empresa espalhados pelo mundo em 30 de agosto de
1995, véspera da abertura da IV Conferência Mundial das Mulheres, realizada em
Pequim, dá uma pálida idéia do que acontece.
Diz a referida matéria: "Quase todos os
governos do mundo têm se pronunciado contra o estupro, espancamento, escravidão
sexual, tortura, mutilação genital feminina e infanticídio feminino. Mas o
abuso de mulheres e garotas, freqüentemente não registrado, é praticado atrás
dos altos muros das prisões, nos confinamentos do lar, ou com a anuência
conferida pelo costume local, segundo documentos da ONU".
E a jornalista prossegue: "E ao longo de todas
as épocas, o estupro tem sido visto como um prêmio justo a combatentes
vitoriosos de uma guerra. 'A violência persegue a vida da mulher na paz e na
guerra', diz um recente estudo feito pelo Programa de Desenvolvimento da ONU
sobre as mulheres. 'E a maioria das leis é inadequada para o combate à
violência --- a menos que os atuais valores sociais e culturais mudem'.
Ou seja, a mentalidade dominante entre os povos,
neste início do Terceiro Milênio da Era Cristã, continua, na essência, a mesma
dos primórdios da civilização. Fatos são muito mais enfáticos do que os bem
elaborados discursos dos vários governos e organizações, que tentam negar o que
não pode ser negado. E estes são terríveis, muitas vezes escabrosos, de tal
sorte que muitas vezes levam pessoas inteligentes, sensíveis e dotadas de bom
senso a questionar a civilização, da forma como se apresenta hoje, senão a
própria racionalidade humana.
O animal tido como o "rei da criação" age,
em relação à sua parceira, como nem as mais broncas feras o fazem em relação às
fêmeas da espécie. As mulheres não
querem nada que não seja o seu legítimo direito à igualdade e dignidade.
Aspiram, acima de tudo, à cooperação permanente e igualitária, à soma de
recursos, esforços e inteligências, com os parceiros masculinos, em busca da
harmonia: no lar, na sociedade e na convivência pacífica e civilizada entre
povos e nações. Ou seja, o seu modo de pensar e de agir não é (e nem nunca
foi), em nada parecido com o comportamento do homem, de domínio e de sujeição.
Essa "guerra santa", todavia, está longe
de acabar. Pelo contrário, está praticamente no início. Há, ainda, um longo e
penoso caminho a percorrer. As mulheres obtiveram, não há como negar,
conquistas marcantes e históricas, em especial a partir da segunda metade do
século passado, entre as quais se destacam o direito ao voto, o acesso à
educação em todos os níveis, o ingresso no mercado de trabalho, assumindo até
tarefas sempre tidas e havidas como eminentemente masculinas, etc.
Contudo, seguem às voltas com os mais variados tipos
de violência: no lar, no trabalho e na sociedade. São vítimas, na maioria das
vezes silenciosas e indefesas, de agressões físicas, sexuais e psicológicas de
todos os tipos e intensidades. E de outras formas de violência bem mais sutis,
embora não menos perversas, como o controle da estética feminina pela óptica
masculina, a desvalorização no mercado de trabalho (recebendo salários sempre
menores do que os homens que exercem as mesmas funções), as dificuldades de
ascensão a postos de comando (nas empresas e na política) e a dupla jornada,
entre outras tantas.
Como se nota, ainda não é momento para comemorações.
Há muito a ser conquistado. Há um longo e espinhoso caminho a percorrer. Vida sem violência, para qualquer pessoa (e,
claro, para a mulher também), não é um prêmio, uma dádiva ou um excepcional ato
de generosidade masculino. Trata-se de inalienável e sagrado direito,
reconhecido formalmente por todos os países integrantes da ONU, mas que
continua sendo ignorado, e portanto violado em todas as partes do mundo, na
maior parte das vezes impunemente.
Prólogo do livro “Guerra dos
Sexos”, Pedro J. Bondaczuk, 1999, inédito.
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