Século de contrastes
Pedro J. Bondaczuk
O
século 20 – embora seja prematuro fazer um balanço definitivo do seu transcurso
– foi caracterizado por extremos. Contou com o pior e com o melhor da história
humana. Teve terríveis assassinos, como Adolf Hitler (responsável pelo
Holocausto), Joseph Stalin (culpado da morte de mais de 20 milhões de
camponeses soviéticos), Mao Tse-Tung (a quem se atribuem atrocidades que só
agora chegam a público), Pol Pot (genocida de mais de dois milhões de
cambojanos), entre outros; e santos com a dimensão de Mohandas Karamanchand
"Mahatma" Gandhi, Madre Teresa de Calcutá, Martin Luther King e João
Paulo II.
Teve
ditadores que se perpetuaram no poder (Kim Il-Sung, Fidel Castro, Augusto
Pinochet, Saddam Hussein, Hafez Al-Assad etc.) e notáveis democratas (Franklin
D. Roosevelt, Winston Churchill, Nelson Mandela etc.). Além disso, contou com
avanços inimagináveis da ciência e da tecnologia, para o bem e para o mal. Como
por exemplo, as magníficas naves do Projeto Apolo, que levaram o homem à Lua.
Ou a que desceu um artefato, dirigível a partir da Terra, no planeta Marte (o
robozinho "Sojourner"). Ou as duas Voyagers, a Magalhães, a Galileu
etc. A corrida espacial, no entanto, despendeu preciosos recursos, que poderiam
ser investidos em avanços sociais. Ainda assim, pode ser considerada como o uso
positivo da ciência no engrandecimento humano.
O
mesmo não ocorreu com a utilização do avião nas guerras, o que teria levado o
seu inventor, Alberto Santos Dumont, ao suicídio. Ou com a fabricação de armas
químicas, bacteriológicas e atômicas, todas capazes de eliminar a vida no
Planeta em questão de horas, ou quiçá minutos. E tende a ocorrer se não
houver critério na manipulação genética, notadamente na clonagem de seres
humanos.
A
medicina evoluiu como nunca antes. Alguns desses "milagres"
biológicos foram as descobertas da penicilina e de outros antibióticos para
combater infecções até recentemente letais. Ou o desenvolvimento de vacinas
contra a pólio, o sarampo e a varíola (esta eliminada virtualmente da face da
Terra) entre outras. Ou os avanços no tratamento do câncer e de outras doenças
mortais, da assepsia, das técnicas cirúrgicas, dos transplantes de órgãos e das
peripécias da engenharia genética (como os bebês de proveta) e que já pode
impedir que crianças nasçam com genes de determinadas deficiências, os
modificando ainda no útero materno e poupando sofrimentos inúteis a muitas
pessoas.
Em
contrapartida, o século 20 teve terríveis epidemias, como a da gripe espanhola,
em 1919, que deixou mais de 20 milhões de mortos; de peste bubônica; de febre
amarela; do cólera etc. Sem falar do surgimento de novos e letais vírus,
notadamente os do ebola, do hantavírus e principalmente da Aids, contra os
quais a medicina ainda pouco pode fazer e cuja prevenção em massa é impossível,
pela ausência de agentes imunizantes.
A
humanidade conviveu, nesses cem anos, com o êxtase e o terror, ambos caminhando
lado a lado. Competições esportivas de âmbito mundial foram organizadas e
mantidas, dada a facilidade criada pela popularização e evolução dos
transportes aéreos, que diminuíram distâncias e reduziram custos. Entre estas
estão a Copa do Mundo de Futebol, os campeonatos mundiais de praticamente todas
as modalidades e a seqüência dos ideais olímpicos do Barão de Coubertin, os
Jogos Olímpicos da era moderna, iniciados em 1896.
Esse
mesmo "encolhimento do mundo", transformado em "aldeia
global", propiciado pelo rádio, pelos satélites e pela telefonia celular,
possibilitou intercâmbios artísticos e culturais. Os progressos na indústria gráfica,
por sua vez, multiplicaram livros, revistas e jornais aos bilhões, em todos os
idiomas conhecidos. E os recursos da informática e da tecnologia da comunicação
aumentaram as possibilidades de se informar, a custos bastante acessíveis às
pessoas de renda mediana.
Mas
o século testemunhou, também, duas terríveis guerras mundiais, além de mais de
duas centenas de conflitos regionais e uma quantidade considerável de golpes e
revoluções, que deixaram, numa estimativa conservadora, mais de cem milhões de
mortos. Em várias ocasiões a humanidade esteve na iminência de extinção, face à
ameaça de um impensável conflito nuclear. Talvez o maior "milagre"
desses últimos 100 anos tenha sido, portanto, o da sobrevivência, diante de
tantos perigos a que a vida esteve exposta.
O
meio ambiente terrestre, por sua vez, nunca sofreu tantas agressões quanto
neste período. Várias espécies, animais e vegetais, extinguiram-se e outras
tantas estão ameaçadas de extinção. O clima no Planeta vem sofrendo perigosas
alterações e o aquecimento da Terra ameaça as calotas polares e grandes
geleiras que, se derretidas, farão desaparecer do mapa cidades e até países.
Quais
teriam sido as pestes do século? As guerras? As depredações ambientais? A Aids?
As armas nucleares? Os genocidas e ditadores? A insegurança política? Frei
Beto, no artigo "Sexo, Aids e a morte por ignorância", publicado em
21 de abril de 1996 no jornal "O Globo", acha que a primazia não cabe
a nenhum dos flagelos acima citados.
"A
Aids, detectada em 1981, está longe de ser a peste do século", enfatizou.
O título fica para a fome, que mata mais pessoas no mundo, sobretudo crianças,
do que qualquer outro fator", acrescentou. E frei Beto pondera: "...A
fome não merece tanta atenção como a Aids. Não existe uma fundação Elizabeth
Taylor contra a fome com número de telefone na lista de Beverly Hills, como o
472.7778 da `Elizabeth Taylor Aids Foundation'. A razão é tão simples quanto
cruel: a fome só mata pobres. A Aids ameaça a todos, sem distinção de classe,
de raça, de sexo ou de idade. Já não há grupos de risco".
Contudo,
pior do que a fome, é o comportamento que a provoca. E este é a verdadeira
"peste do século", que é preciso erradicar, para garantir a
sobrevivência humana por uma série de milênios a mais, e sempre evoluindo, rumo
à absoluta racionalidade. Aliás, não se trata somente de "um" mau
comportamento ou sentimento. São vários, correlatos, como o preconceito, o
egoísmo, o desamor e a desmedida cobiça, entre outros, que ameaçam a humanidade
– agora dotada de um poder de destruição ímpar, como nunca antes teve – de
extinção.
(Artigo
publicado na página 3, Opinião, do Correio Popular, em 3 de fevereiro de 1997)
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