Obras
morrem
Pedro J. Bondaczuk
As
nossas obras – não importa de que natureza forem – não dependem da qualidade,
da utilidade ou de qualquer outro fator prático, para sobreviver. Sobrevivem,
ou não, exclusivamente ao sabor do acaso e das circunstâncias. Essa realidade
(para mim perversa, mas inexorável) ganha maior relevância nas artes.
Estende-se àquelas com potencial, inclusive, de serem duradouras, como a
literatura, a pintura e a escultura. O leitor estranhou que não citei a música?
Bem, a partir do momento em que se padronizaram os registros das notas musicais,
no chamado “pentagrama” ela ganhou, de fato, “oportunidade” de sobrevivência.
Pergunto, todavia: e antes? Os povos antigos, que viveram em um período
anterior a essa invenção, não faziam música? Ora, ora, ora.
Todavia,
nenhuma composição, absolutamente nenhuma anterior à possibilidade de registro
gráfico das notas musicais, sobreviveu no tempo. Quem as testemunhou e se
alegrou (ou se entristeceu) com seu ritmo, melodia e harmonia, morreu. Delas
não restou o mais leve vestígio. Como eram? Ninguém sabe e jamais saberá. É
impossível! No entanto, existiram, conforme registram cronistas da época que,
todavia, não tiveram a menor condição de reportar como eram. E o que dizer da
dança, antes da invenção dos meios de gravação modernos, atuais, de imagem e de
som? Como os egípcios dançavam? E os judeus? E os gregos e romanos? (para
citar, somente, os povos mais conhecidos, sobre os quais sobejam registros).
Todavia,
os compositores de música, anteriores à invenção dos meios de grafar as notas
musicais num pentagrama, aspiravam que suas composições sobrevivessem e
passassem de uma geração a outra. Os coreógrafos, igualmente, sonhavam que as
danças que inventaram se tornassem eternas e que fossem transmitidas “ad
aeternum”, pelos adultos às crianças e essas aos seus filhos, sucessivamente,
tempo afora. Não sobreviveram. Nos dois casos, os artistas foram vencidos pelo
acaso e circunstâncias e tanto eles, quanto suas obras, caíram no esquecimento
eterno. Todos estamos sujeitos a isso. Até o que Jesus Cristo fez, notadamente
seus milagres, embora meticulosamente descritos pelos evangelistas, dependem de
terceiros para “sobreviver”. Não restou nenhum, um único protagonista para
testemunhar que de fato aconteceram. Dependem, pois, da crença, da fé dos
cristãos, para “sobreviver”. Há, todavia, céticos (e não são poucos) que não
crêem nesses milagres e ninguém tem condições “materiais” de comprovar que
aconteceram.
Esse
é um tema bastante explorado por escritores de todos os tempos, e com razão.
Ninguém gosta de admitir que suas obras são inúteis ou que dependem de tantas
coisas imponderáveis para que não desapareçam com o tempo. Eu não gostaria que
as minhas caíssem no esquecimento após minha morte e muito menos enquanto
estiver vivo e não por questão de vaidade, mas por senso prático. Quem me
garante, porém, que não cairão? O romancista australiano Morris West, um dos
meus preferidos (tenho em minha biblioteca vinte e três dos seus livros), no romance “O Advogado do Diabo”, tratou do
aspecto da efemeridade do que legamos ao mundo (isso, quando legamos). É uma
reflexão amarga, que não gostaria de fazer, mas que é a pura expressão da
realidade.
O
citado escritor constatou: “A obra morre. Quantos homens Cristo curou? E
quantos deles estão vivos hoje? A obra é uma expressão daquilo que um homem é, do que sente, daquilo em que
acredita. Se dura, se se desenvolve, não é devido ao homem que a começou, mas
porque outros homens pensam, sentem e crêem da mesma maneira”. Dependemos,
pois, de outros para que aquilo que viermos a produzir tenha ao menos remota
chance de sobreviver. Precisamos que nossos livros (no caso de escritores,
claro) caiam em mãos de pessoas que pensem, sintam e creiam no que pensamos,
sentimos e cremos. Caso isso não aconteça... Nosso destino será o mesmo dos
compositores de música anteriores à invenção do método de registro das notas
musicais em pentagramas. Ou dos coreógrafos anteriores à invenção dos meios de
gravação de sons e de imagens. Ou seja, o do esquecimento.
Há
casos, raros, em que a obra sobrevive e quem a elaborou é lembrado e, muito
raramente, até exaltado. Esta, todavia, convenhamos, não é a regra. É mera
exceção. Vale a pena arriscar o certo pelo incerto por um resultado tão pífio e
instável? Jorge Luís Borges expressou isso com a maestria de sempre ao
escrever: “Há, pois, a idéia de que a imortalidade é um privilégio de alguns
poucos, dos grandes. Mas cada um se julga grande, cada um tende a pensar que
sua imortalidade é necessária”. Claro que a imensa maioria (que chega a beirar
à totalidade) se desilude ou se frustra. Desaparece e a obra que produziu com
tanto entusiasmo, paixão e garra, some sem deixar o menor vestígio.
Mesmo
produções, digamos, “concretas”, como pintura e escultura, dependem de
terceiros para sobreviver. Quadros maravilhosos, pintados por mestres que
mereceriam a “imortalidade”, sofrem desgastes, por razões várias e, se não
forem restaurados, se perdem irremediavelmente. E para que recebam a devida
restauração é preciso que haja alguém que se interesse por eles. O mesmo vale para
esculturas. Quantas já não se perderam, destruídas, por exemplo, em
bombardeios, durante guerras, ou por terremotos ou por outras tantas causas
violentas? E neste caso não há, sequer, meios de serem restauradas.
Cito,
para encerrar estas reflexões o que frade agostiniano Pedro Malon de Chaide –
um dos autores místicos mais famosos do século XVI – escreveu, transcrito por
Jorge Luís Borges em seu excelente livro “História da Eternidade”: “Deus fez
com que tivésseis um sinete oitavado, de ouro, tendo numa parte um leão
esculpido; na outra, um cavalo; noutra uma águia, e assim nas demais; e num
pedaço de cera imprimísseis o leão; noutro, a águia; noutro, o cavalo; é claro
que tudo o que está na cera está no ouro, e só podeis imprimir o que ali tendes
esculpido. Mas há uma diferença, que, no final, o que está na cera é cera, e
vale pouco; mas o que está no ouro é ouro e vale muito. Nas criaturas estão
estas perfeições finitas e de pouco valor; em Deus são de ouro, são o próprio
Deus. Daí podermos inferir que a matéria é nada”.
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