Thursday, July 17, 2014

Obras morrem

Pedro J. Bondaczuk

As nossas obras – não importa de que natureza forem – não dependem da qualidade, da utilidade ou de qualquer outro fator prático, para sobreviver. Sobrevivem, ou não, exclusivamente ao sabor do acaso e das circunstâncias. Essa realidade (para mim perversa, mas inexorável) ganha maior relevância nas artes. Estende-se àquelas com potencial, inclusive, de serem duradouras, como a literatura, a pintura e a escultura. O leitor estranhou que não citei a música? Bem, a partir do momento em que se padronizaram os registros das notas musicais, no chamado “pentagrama” ela ganhou, de fato, “oportunidade” de sobrevivência. Pergunto, todavia: e antes? Os povos antigos, que viveram em um período anterior a essa invenção, não faziam música? Ora, ora, ora.

Todavia, nenhuma composição, absolutamente nenhuma anterior à possibilidade de registro gráfico das notas musicais, sobreviveu no tempo. Quem as testemunhou e se alegrou (ou se entristeceu) com seu ritmo, melodia e harmonia, morreu. Delas não restou o mais leve vestígio. Como eram? Ninguém sabe e jamais saberá. É impossível! No entanto, existiram, conforme registram cronistas da época que, todavia, não tiveram a menor condição de reportar como eram. E o que dizer da dança, antes da invenção dos meios de gravação modernos, atuais, de imagem e de som? Como os egípcios dançavam? E os judeus? E os gregos e romanos? (para citar, somente, os povos mais conhecidos, sobre os quais sobejam registros).

Todavia, os compositores de música, anteriores à invenção dos meios de grafar as notas musicais num pentagrama, aspiravam que suas composições sobrevivessem e passassem de uma geração a outra. Os coreógrafos, igualmente, sonhavam que as danças que inventaram se tornassem eternas e que fossem transmitidas “ad aeternum”, pelos adultos às crianças e essas aos seus filhos, sucessivamente, tempo afora. Não sobreviveram. Nos dois casos, os artistas foram vencidos pelo acaso e circunstâncias e tanto eles, quanto suas obras, caíram no esquecimento eterno. Todos estamos sujeitos a isso. Até o que Jesus Cristo fez, notadamente seus milagres, embora meticulosamente descritos pelos evangelistas, dependem de terceiros para “sobreviver”. Não restou nenhum, um único protagonista para testemunhar que de fato aconteceram. Dependem, pois, da crença, da fé dos cristãos, para “sobreviver”. Há, todavia, céticos (e não são poucos) que não crêem nesses milagres e ninguém tem condições “materiais” de comprovar que aconteceram.

Esse é um tema bastante explorado por escritores de todos os tempos, e com razão. Ninguém gosta de admitir que suas obras são inúteis ou que dependem de tantas coisas imponderáveis para que não desapareçam com o tempo. Eu não gostaria que as minhas caíssem no esquecimento após minha morte e muito menos enquanto estiver vivo e não por questão de vaidade, mas por senso prático. Quem me garante, porém, que não cairão? O romancista australiano Morris West, um dos meus preferidos (tenho em minha biblioteca vinte e três dos seus livros),  no romance “O Advogado do Diabo”, tratou do aspecto da efemeridade do que legamos ao mundo (isso, quando legamos). É uma reflexão amarga, que não gostaria de fazer, mas que é a pura expressão da realidade.

O citado escritor constatou: “A obra morre. Quantos homens Cristo curou? E quantos deles estão vivos hoje? A obra é uma expressão daquilo que um  homem é, do que sente, daquilo em que acredita. Se dura, se se desenvolve, não é devido ao homem que a começou, mas porque outros homens pensam, sentem e crêem da mesma maneira”. Dependemos, pois, de outros para que aquilo que viermos a produzir tenha ao menos remota chance de sobreviver. Precisamos que nossos livros (no caso de escritores, claro) caiam em mãos de pessoas que pensem, sintam e creiam no que pensamos, sentimos e cremos. Caso isso não aconteça... Nosso destino será o mesmo dos compositores de música anteriores à invenção do método de registro das notas musicais em pentagramas. Ou dos coreógrafos anteriores à invenção dos meios de gravação de sons e de imagens. Ou seja, o do esquecimento. 

Há casos, raros, em que a obra sobrevive e quem a elaborou é lembrado e, muito raramente, até exaltado. Esta, todavia, convenhamos, não é a regra. É mera exceção. Vale a pena arriscar o certo pelo incerto por um resultado tão pífio e instável? Jorge Luís Borges expressou isso com a maestria de sempre ao escrever: “Há, pois, a idéia de que a imortalidade é um privilégio de alguns poucos, dos grandes. Mas cada um se julga grande, cada um tende a pensar que sua imortalidade é necessária”. Claro que a imensa maioria (que chega a beirar à totalidade) se desilude ou se frustra. Desaparece e a obra que produziu com tanto entusiasmo, paixão e garra, some sem deixar o menor vestígio.

Mesmo produções, digamos, “concretas”, como pintura e escultura, dependem de terceiros para sobreviver. Quadros maravilhosos, pintados por mestres que mereceriam a “imortalidade”, sofrem desgastes, por razões várias e, se não forem restaurados, se perdem irremediavelmente. E para que recebam a devida restauração é preciso que haja alguém que se interesse por eles. O mesmo vale para esculturas. Quantas já não se perderam, destruídas, por exemplo, em bombardeios, durante guerras, ou por terremotos ou por outras tantas causas violentas? E neste caso não há, sequer, meios de serem restauradas.

Cito, para encerrar estas reflexões o que frade agostiniano Pedro Malon de Chaide – um dos autores místicos mais famosos do século XVI – escreveu, transcrito por Jorge Luís Borges em seu excelente livro “História da Eternidade”: “Deus fez com que tivésseis um sinete oitavado, de ouro, tendo numa parte um leão esculpido; na outra, um cavalo; noutra uma águia, e assim nas demais; e num pedaço de cera imprimísseis o leão; noutro, a águia; noutro, o cavalo; é claro que tudo o que está na cera está no ouro, e só podeis imprimir o que ali tendes esculpido. Mas há uma diferença, que, no final, o que está na cera é cera, e vale pouco; mas o que está no ouro é ouro e vale muito. Nas criaturas estão estas perfeições finitas e de pouco valor; em Deus são de ouro, são o próprio Deus. Daí podermos inferir que a matéria é nada”.


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