Sunday, July 06, 2014

Papa e a “via crucis” do povo chileno


Pedro J. Bondaczuk


O papa João Paulo II, dentro de mais duas semanas, estará visitando o Chile, que vive a sua “via crucis” de quase 14 anos de um regime militar que não tem tempo certo para acabar e devolver o comando das decisões à sociedade civil. A despeito de toda a censura que impera sobre as informações procedentes de lá, denúncias sobre torturas, prisões arbitrárias e toda a sorte de indignidades cometidas contra cidadãos comuns se sucedem de maneira apavorante.

No correr desses quase cinco lustros de tormento, a população local, em várias oportunidades, até que chegou a vislumbrar uma pálida luz de esperança bem no finalzinho do túnel. Mas em geral, a decepção posterior invariavelmente foi maior, quando percebeu que tudo não passou de miragem.

É verdade que as coisas, neste início de 1987, pelo menos para quem está à distância, parecem ter ficado mais amenas para os chilenos. Afinal, na semana passada, foi promulgada uma lei, permitindo a reabertura dos partidos políticos que não tenham cunho marxista.

Para alguns setores oposicionistas moderados, essa atitude do regime refletiu um avanço no rumo do estabelecimento de uma sociedade que não apenas os habitantes do Chile, mas toda a comunidade latino-americana, sonham que um dia irá se estabelecer ali.

Para outros segmentos mais radicais, no entanto, tudo não passa de outro enorme engodo do atual regime. Segundo tais lideranças, o general Pinochet simplesmente estaria amenizando um pouco a situação do país para a visita do papa João Paulo II. Entendem, esses políticos, que assim que o Pontífice virar as costas, tudo voltará a ser como antes, como sempre foi nos últimos 13 anos e meio.

Para justificar a afirmação de que uma pretensa abertura política é uma farsa, argumentam com o fato de que o estado de emergência, em vigor desde 1973, continua a ser religiosamente renovado a cada ciclo de noventa dias, fazendo com que o Direito no país seja ditado pelo arbítrio e não de forma consensual pela sociedade, através de seus órgãos apropriados.

Reforçam essa tese brandindo com a realidade de uma igualmente periódica renovação de um outro instrumento de exceção jurídico-institucional, tão odioso quanto o primeiro. Ou seja, o “Estado de Perigo de Perturbação da Ordem Pública”.  Este último vem sendo reforçado, também de três em três meses, desde 1982.

Enquanto isso, denúncias em cima de denúncias, feitas por autoridades sérias e reputadas de defesa dos direitos humanos, se sucedem, acerca de arbitrariedades de toda a sorte, cometidas no país, sob o pretexto de salvaguardar algo que à luz dos princípios de organização dos Estados modernos e realmente democráticos (se é que isso ainda é possível na autêntica acepção do termo), não existe.

Pessoas são encarceradas por causa de suas convicções políticas, como se esse fosse um procedimento perfeitamente normal e passivo de tranqüila aprovação da comunidade internacional, nos estertores deste infeliz século da violência e do desencanto.

No mesmo dia em que um decreto, estatuindo as normas para a reabertura dos partidos políticos, foi promulgado pelo general Pinochet, o seu regime foi condenado mais uma vez, por unanimidade, pela Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, reunida em Genebra, por descumprir os princípios mais elementares da convivência comunitária.

Como em todos os regimes ditatoriais, verifica-se uma enorme inversão de valores. Assassinos paranóicos e sádicos, que deveriam estar segregados do convívio social em virtude da sua fúria sanguinária,. Estabelecem “leis”, a ferro e fogo, e as impõem a uma maioria indefesa, torturando, pisoteando e dignidade alheia e espezinhando pessoas pacatas, cuja única infração, muitas vezes, é não concordar com estes desmandos. Será este o estado de coisas que o Papa irá ver dentro de mais duas semanas, quando desembarcar no Chile, para tentar consolar multidões de sofredores.

(Artigo publicado na página 13, Internacional, do Correio Popular, em 17 de março de 1987).


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