Thursday, July 31, 2014

Dúvidas e mais dúvidas, mas nenhuma certeza

Pedro J. Bondaczuk

A vida de João Ramalho é impossível de ser relatada em forma de biografia, daquelas sérias e com credibilidade, mesmo que relativa, das baseadas em documentos e em testemunhos de contemporâneos. Há longos períodos de tempo em que não se sabe o que fez, com quem esteve, para onde foi ou deixou de ir, para dizer o mínimo. Isso, a começar pelos 19 anos que teria vivido em Portugal, antes de embarcar com destino ao Novo Mundo.

Quem foram os seus pais? Qual a razão de seu sobrenome ser diferente do da sua suposta família? Quando se casou com Catarina Fernandes, se é que se casou mesmo com ela? Como se vê, são informações imprescindíveis em qualquer biografia que se preze e que não dispomos. Quem se propuser a escrever sobre João Ramalho, portanto, tem que fazê-lo exatamente como eu me propus a fazer, no projeto a que já me referi, que conta com atraso de dezessete anos. Ou seja, em forma de ficção, de romance, preenchendo os vazios de referências mesmo que contraditórias com criatividade, com imaginação, com coisas que “poderiam” ter acontecido, mas que ninguém sabe e jamais saberá se aconteceram.

Para ser honesto com o leitor, todavia, o escritor que se dispuser a encarar esse desafio, tem a obrigação moral de esclarecer que não se trata de nenhuma biografia. Que o tal livro é de ficção, embora baseado “em fatos reais” (só alguns, óbvio). Ademais, quem recorrer a essa fórmula não estará sequer sendo original. Há muitos, pelo menos algumas dezenas de romances por aí com as mesmíssimas características. Algum dia ainda lhes apresentarei uma relação deles.

Mas voltando a João Ramalho, sabe-se que ele deixou Portugal em 1512, embarcado em um navio mercante, rumo às terras recém descobertas do que viria a ser algum dia o Brasil. E aqui surgem diversas novas dúvidas. Ele foi degredado, como asseguram algumas fontes, pelo fato de ser judeu e de se recusar a se converter à fé cristã? Se foi o caso, teve muita sorte. A Inquisição não costumava ser tão benevolente com seus infelizes réus. Em geral, estes eram intensamente interrogados, não raro torturados para confessar até o que não eram e não fizeram (pudera), e caso não convencessem os inquisidores ou se recusassem a se converter, poderiam ir parar  em fogueiras (o que era sumamente freqüente). Isso se resistissem às torturas e não morressem antes, claro. Por isso, não creio que tenha sido esse o motivo da partida de João Ramalho de Portugal.

Em meu romance, pretendo pintá-lo como um jovem irrequieto, ávido por aventuras, que se dispõe a seguir para o Novo Mundo em busca de fortuna fácil, como tantos outros aventureiros miseráveis do seu tempo. Creio que seja a versão mais verossímil. Ou, quem sabe, embora casado, o rapaz tenha se envolvido com outra mulher e despertado a ira dos pais dela? Pode ser! Não se pode descartar essa hipótese, que entendo, até, muito plausível. Afinal, João Ramalho deve ter sido uma figura fascinante, bem apessoada, imponente e encantadora, Np sentido de sedução, caso contrário não conseguiria, no Brasil, encantar tantas índias, a ponto de se casar com uma delas (e justo a filha de um cacique) e de gerar três centenas de filhos com tantas outras. Haja potência para tanto! O cara devia ser um garanhão de marca, um reprodutor como raros. Desconheço, na História, e não somente do País, outro personagem com tamanho apetite sexual e tanta fecundidade. Nem os sultões de narrativas como as “Mil e uma noites” foram páreos para esse ousado (e sortudo) português.

Definido esse ponto, sobre o motivo de João Ramalho ter deixado Portugal, supondo ser correto o fato disso se dever a ânsia por aventuras, surgem muitos outros “furos” nessa pretendida narrativa. O primeiro, logo de cara, é o que trata da duração de sua viagem. Os historiadores citam (e nisso são unânimes) que o navio em que o rapaz viajava naufragou na costa de onde seria mais tarde a Capitania de São Vicente, em 1513. Sabe-se, porém, que o trajeto entre Portugal e o Brasil, mesmo com a precariedade dos navios de então, não durava tanto, ou seja, um ano. A duração máxima, pelo que se depreende de pesquisas, era de dois meses, e isso enfrentando as piores condições, como calmarias e brutais tempestades, por exemplo. Onde a embarcação de João Ramalho esteve nos outros dez meses, se é que esteve? Isso, historiador algum jamais se aventurou nem mesmo a especular.

Outro grande hiato (e esse longuíssimo, dos mesmos 19 anos que o aventureiro tinha ao deixar Portugal) se refere ao período posterior a 1513 (supondo ser este, de fato, o ano do naufrágio da embarcação) e 1532, quando recepcionou Martim Afonso de Souza, que havia recém assumido a tarefa de colonização do Brasil. O que fez nesse tempo? Onde esteve? Como e com quem viveu? Mistério. Insondável mistério. É outro ponto a ser preenchido por um hábil romancista com peripécias mil, com tudo o que conseguir imaginar. Sobre esse aludido encontro entre a autoridade da Coroa e o estranho aventureiro, Raimundo Menezes assim se refere a ele, em seu livro “Aconteceu no velho São Paulo” (Coleção Saraiva, 1964): “Quando Martim Afonso de Souza aportou em São Vicente, pela altura de 1532, foi recebido, para sua surpresa, por dois patrícios, que aqui se encontravam já a longo tempo: Antonio Rodrigues e João Ramalho”.

Como se vê, embora seja impossível escrever uma biografia minimamente exata, que mereça esse nome, sobre esse estranhíssimo personagem da História do Brasil, se pode escrever muita coisa a seu propósito, no mínimo para um extensíssimo livro de ensaios, mesmo que se trate de registrar, somente, dúvidas despertadas pelas versões que circulam sobre ele. Imaginem que big romance tudo isso pode originar!

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