Cruzada
contra a fome
Pedro J. Bondaczuk
O presidente Tancredo Neves, cuja eleição completa o
primeiro aniversário na próxima quarta-feira, em seu discurso de vitória
proferido no Congresso Nacional, no dia 15 de janeiro de 1985, afirmou:
"Cabe acentuar que o desenvolvimento social não pode ser considerado mera
decorrência do desenvolvimento econômico. A Nação é essencialmente constituída
pelas pessoas que a integram. De modo que cada vida humana vale muito mais do
que a elevação de um índice estatístico". É a propósito disso que
convidamos o leitor a nos acompanhar em alguns raciocínios.
Quando o saudoso senador Teotônio Vilela iniciou, em
1981, uma cruzada nacional de redemocratização, afirmou, num pronunciamento
histórico que fez em Campinas, que o Brasil possui quatro grandes dívidas: a
externa, a interna, a política e a social. E que esta última era a mais urgente
para ser saldada. Recursos para isso, convenhamos, existem, a despeito da crise
econômica, já que a nossa economia, com todas as distorções que apresenta, é a
oitava do mundo ocidental em volume. O que falta, às vezes, é vontade política
para promover uma campanha séria, de âmbito nacional, para alterar o grave
quadro de fome e de desnutrição, especialmente entre as crianças, que se instala
entre nós. Afinal, elas são o maior investimento que um país pode fazer se
quiser aspirar a um futuro grandioso. E nós aspiramos a isso.
Esse preâmbulo vem a propósito de uma informação
prestada pela Associação Brasileira de Pediatria, segundo a qual, a fome e a
desnutrição matam 45 brasileirinhos, em média, por hora. Isso perfaz, no final
de uma simples ronda do ponteiro de um relógio pelas 24 horas de um dia, 1.080
pessoas! Ao cabo de um ano, quase 400 mil esperanças são extintas em todo o
País. Nesses cálculos não estão incluídos os óbitos atribuídos a outras
seqüelas da miséria, como a falta de asseio, a ausência de assistência médica,
o abandono e as doenças infantis, que têm um campo fértil de disseminação entre
tantos sub e desnutridos.
Esses números, vistos de relance, apressadamente, a
princípio não dizem grande coisa. Mas tais óbitos representam, por exemplo, o
total da população de países relativamente conhecidos da comunidade
internacional, como o Bahrein (371 mil habitantes), o Djibuti (330 mil),
Guiné-Equatorial (304 mil) e Islândia (238 mil). É como se num espaço de apenas
365 dias, todas essas pessoas de repente fossem dizimadas por alguma peste.
Entre nós essa peste chama-se fome. O problema, como se vê, é sério e requer
soluções urgentes e drásticas.
Com esses números (e muitos outros) nas mãos é que o
presidente José Sarney pretende voltar seus olhos para a área social. Todavia,
é indispensável que as medidas de socorro que ele pretende implantar, como a
cesta básica de alimentos, o programa de distribuição de leite e outras
providências do mesmo teor, venham acompanhadas de algo mais. De um permanente
processo de instrução e promoção desses seres humanos. Que além de "se dar
o peixe" para tantos famintos, se lhes "ensine a pescar". Que lhes
sejam oferecidas condições de dignidade e de plena cidadania, com o acesso ao
trabalho, à educação e à moradia decente. Até para que não se vicie uma parcela
ponderável de toda a população a apenas aguardar, passiva, atitudes
paternalistas das autoridades, principalmente porque elas têm direito a tal
assistência.
A partir do próximo mês, o Programa de Suplementação
Alimentar, coordenado pelo Ministério da Saúde, através do Instituto Nacional
de Alimentação e Nutrição, que conta com a participação do governo do Estado e
é executado pelo município, chega à periferia de Campinas. Nessas áreas pobres
e densamente povoadas, 22 mil pessoas, entre crianças, nutrizes e gestantes,
desnutridas e às vezes famélicas, serão atingidas. A medida constará da
distribuição de uma cesta básica, num total de 223 toneladas de alimentos,
sendo 56 toneladas de arroz, 56 toneladas de feijão, 56 toneladas de açúcar e
31 toneladas de leite. O programa vai alcançar uma população, apenas em nossa
cidade, equivalente até a de alguns países, como a dos principados de Mônaco
(27.063 habitantes) e Liechtenstein (26.512) e a República de San Marino
(22.206), todos na Europa.
É verdade que a medida é louvável, mas não deixa de
ser insuficiente. E que não venham com essa desculpa de falta de dinheiro.
Afinal, esses recursos abundaram no passado para aventuras estapafúrdias e
irresponsáveis, do tipo Ferrovia do Aço, do programa nuclear e de outros
assemelhados. Nós somos ou não somos uma sociedade nacional? É evidente que
sim. Por essa razão, todos somos responsáveis por todos.
Já é hora de se parar com atitudes cínicas. De
simplesmente ler este tipo de alerta, como o que estamos fazendo, fazer algum
comentário apressado, do tipo "intelectual adora a miséria" e passar
por alto, em paz com a própria consciência. É indispensável que aquele que
tiver essa tentação atente que a cada 90 segundos um brasileirinho está
morrendo de fome, enquanto muitas vezes nadamos no desperdício, imersos num
estúpido egoísmo.
O saudoso presidente eleito Tancredo Neves, com a
clarividência que Deus lhe deu, alertou, em seu discurso de vitória:
"Temos de reconhecer e admitir, como objetivo básico de segurança
nacional, a garantia de alimento, saúde, habitação, educação e transportes para
todos os brasileiros". Afinal, não somos nenhum Congo e nem Bangladesh...
(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio
Popular, em 12 de janeiro de 1986)
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