Thursday, July 31, 2014

Cruzada contra a fome


Pedro J. Bondaczuk


O presidente Tancredo Neves, cuja eleição completa o primeiro aniversário na próxima quarta-feira, em seu discurso de vitória proferido no Congresso Nacional, no dia 15 de janeiro de 1985, afirmou: "Cabe acentuar que o desenvolvimento social não pode ser considerado mera decorrência do desenvolvimento econômico. A Nação é essencialmente constituída pelas pessoas que a integram. De modo que cada vida humana vale muito mais do que a elevação de um índice estatístico". É a propósito disso que convidamos o leitor a nos acompanhar em alguns raciocínios.

Quando o saudoso senador Teotônio Vilela iniciou, em 1981, uma cruzada nacional de redemocratização, afirmou, num pronunciamento histórico que fez em Campinas, que o Brasil possui quatro grandes dívidas: a externa, a interna, a política e a social. E que esta última era a mais urgente para ser saldada. Recursos para isso, convenhamos, existem, a despeito da crise econômica, já que a nossa economia, com todas as distorções que apresenta, é a oitava do mundo ocidental em volume. O que falta, às vezes, é vontade política para promover uma campanha séria, de âmbito nacional, para alterar o grave quadro de fome e de desnutrição, especialmente entre as crianças, que se instala entre nós. Afinal, elas são o maior investimento que um país pode fazer se quiser aspirar a um futuro grandioso. E nós aspiramos a isso.

Esse preâmbulo vem a propósito de uma informação prestada pela Associação Brasileira de Pediatria, segundo a qual, a fome e a desnutrição matam 45 brasileirinhos, em média, por hora. Isso perfaz, no final de uma simples ronda do ponteiro de um relógio pelas 24 horas de um dia, 1.080 pessoas! Ao cabo de um ano, quase 400 mil esperanças são extintas em todo o País. Nesses cálculos não estão incluídos os óbitos atribuídos a outras seqüelas da miséria, como a falta de asseio, a ausência de assistência médica, o abandono e as doenças infantis, que têm um campo fértil de disseminação entre tantos sub e desnutridos.

Esses números, vistos de relance, apressadamente, a princípio não dizem grande coisa. Mas tais óbitos representam, por exemplo, o total da população de países relativamente conhecidos da comunidade internacional, como o Bahrein (371 mil habitantes), o Djibuti (330 mil), Guiné-Equatorial (304 mil) e Islândia (238 mil). É como se num espaço de apenas 365 dias, todas essas pessoas de repente fossem dizimadas por alguma peste. Entre nós essa peste chama-se fome. O problema, como se vê, é sério e requer soluções urgentes e drásticas.

Com esses números (e muitos outros) nas mãos é que o presidente José Sarney pretende voltar seus olhos para a área social. Todavia, é indispensável que as medidas de socorro que ele pretende implantar, como a cesta básica de alimentos, o programa de distribuição de leite e outras providências do mesmo teor, venham acompanhadas de algo mais. De um permanente processo de instrução e promoção desses seres humanos. Que além de "se dar o peixe" para tantos famintos, se lhes "ensine a pescar". Que lhes sejam oferecidas condições de dignidade e de plena cidadania, com o acesso ao trabalho, à educação e à moradia decente. Até para que não se vicie uma parcela ponderável de toda a população a apenas aguardar, passiva, atitudes paternalistas das autoridades, principalmente porque elas têm direito a tal assistência.

A partir do próximo mês, o Programa de Suplementação Alimentar, coordenado pelo Ministério da Saúde, através do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, que conta com a participação do governo do Estado e é executado pelo município, chega à periferia de Campinas. Nessas áreas pobres e densamente povoadas, 22 mil pessoas, entre crianças, nutrizes e gestantes, desnutridas e às vezes famélicas, serão atingidas. A medida constará da distribuição de uma cesta básica, num total de 223 toneladas de alimentos, sendo 56 toneladas de arroz, 56 toneladas de feijão, 56 toneladas de açúcar e 31 toneladas de leite. O programa vai alcançar uma população, apenas em nossa cidade, equivalente até a de alguns países, como a dos principados de Mônaco (27.063 habitantes) e Liechtenstein (26.512) e a República de San Marino (22.206), todos na Europa.

É verdade que a medida é louvável, mas não deixa de ser insuficiente. E que não venham com essa desculpa de falta de dinheiro. Afinal, esses recursos abundaram no passado para aventuras estapafúrdias e irresponsáveis, do tipo Ferrovia do Aço, do programa nuclear e de outros assemelhados. Nós somos ou não somos uma sociedade nacional? É evidente que sim. Por essa razão, todos somos responsáveis por todos.

Já é hora de se parar com atitudes cínicas. De simplesmente ler este tipo de alerta, como o que estamos fazendo, fazer algum comentário apressado, do tipo "intelectual adora a miséria" e passar por alto, em paz com a própria consciência. É indispensável que aquele que tiver essa tentação atente que a cada 90 segundos um brasileirinho está morrendo de fome, enquanto muitas vezes nadamos no desperdício, imersos num estúpido egoísmo.

O saudoso presidente eleito Tancredo Neves, com a clarividência que Deus lhe deu, alertou, em seu discurso de vitória: "Temos de reconhecer e admitir, como objetivo básico de segurança nacional, a garantia de alimento, saúde, habitação, educação e transportes para todos os brasileiros". Afinal, não somos nenhum Congo e nem Bangladesh...

(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 12 de janeiro de 1986)


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