Quando a ficção se vale da
História
Pedro J. Bondaczuk
A História – aquela que é
considerada ciência, baseada em documentos e em descobertas arqueológicas – tem
se constituído, há muito, em farto (diria inesgotável) filão temático para
ficcionistas talentosos. Não é tarefa, todavia, para qualquer um. Escritores
criativos conseguem misturar personagens e situações ficcionais com fatos e
vultos históricos, sem descaracterizar um e nem outro. Fazem isso mediante
enredos paralelos que se cruzam (às vezes não) no desfecho. Cumprem, assim,
simultaneamente, dois dos muitos objetivos da leitura: instruem e entretêm.
Há “puristas”, quer no campo da
Literatura, quer (principalmente) no da História, que se opõem a esse
procedimento. Argumentam que essa mistura de ficção e de realidade confunde
quem lê e distorce os acontecimentos reais. Tolice. Isso vai da perícia, da
competência e da criatividade de quem recorre a esse filão. Por isso, fiz a
ressalva que a tarefa não é para qualquer um. É desafio para os melhores.
Tenho, na minha biblioteca, dezenas de livros com essas características.
Tivesse tempo e não fosse premido pelo relógio para escrever em tempo hábil
essas reflexões diárias, relacionaria pelo menos as principais obras que seguem
essa empolgante trilha. Como não tenho, vou meio que ao acaso e menciono alguns
livros que consigo enxergar à distância nas estantes mais visíveis da minha
biblioteca.
Cito, por exemplo, “Eu, Claudius,
o imperador”, de Robert Graves, publicado pela Abril Cultural, com magnífica
tradução de Mário Quintana. A narrativa propõe-se a ser uma espécie de
“autobiografia” desse pitoresco governante romano, ridicularizado até por
historiadores meticulosos e sérios, por sua deficiência física (era coxo), sua
timidez e contundente gagueira. Mas, principalmente, pelas aventuras sexuais de
sua insaciável esposa, Messalina. Aliás, muito do que se lê sobre essa mulher,
pintada como incurável ninfomaníaca, dessas de manterem dezenas de relações
sexuais num único dia e ainda quererem mais, entendo que se trate de fantasia.
Como um historiador pode documentar com precisão a vida íntima, sobretudo a
sexual, de determinada mulher, ainda mais se tratando da esposa de um
imperador? Não pode! Baseia-se, pois, em boatos e no que conhecemos como
“fofocas” a propósito. Mas daí a jurar que se trate de lídima expressão da
verdade vai uma distância sem tamanho.
Aliás, a propósito dessa
imperatriz romana, esposa do difamado Claudius, que no entanto tem feitos
notáveis em seu currículo como poucos imperadores puderam ostentar, vislumbro,
à distância, numa das prateleiras da minha biblioteca, o livro “Messalina”,
escrito por Siegfried Obermeier, lançado no Brasil pela Geração Editorial. Não
o interpreto como relato histórico, embora seja apresentado como sendo. Considero-o,
isso sim, deliciosa obra de ficção. Pelo menos, é um livro divertido (ou
pervertido?). É leitura que recomendo para os que entendem que arte (no caso
Literatura) e moral são compartimentos distintos, que nada têm a ver um com o
outro. Se você, caríssimo leitor, tiver um dinheirinho extra, compre esse
livro. Se vai aprender algo, não posso jurar. Mas garanto que irá se divertir.
É óbvio que romances baseados em
fatos históricos não se restringem aos dois que citei. Só na minha biblioteca,
tenho dezenas deles. Cito, por exemplo, dois da dupla francesa Émile Erkmann e
Alexandre Chatrian (sobre cuja parceria tratei aqui mesmo, neste espaço, se não
me falha a memória, em 2011). Ambos escreveram, em conjunto, 21 livros, todos
mais ou menos nessa linha. Os dois mais conhecidos, ambos tratando do
conquistador francês Napoleão Bonaparte, têm os respectivos títulos, na versão
em português de “O recruta de Napoleão” e “Waterloo”. Nesse contexto, não posso
esquecer de “Guerra e paz”, de Leon Tolstoi ou de “Doutor Jivago”, de Bóris
Pasternak.
No Brasil, também temos dezenas
de escritores que recorreram, com sucesso, a esse inesgotável filão. Cito, por
exemplo, Paulo Setúbal, de quem tenho quase toda a obra (poética e ficcional),
notadamente os livros “Os irmãos Leme” (tratando da trajetória do bandeirante
Fernão Dias Paes Leme e de seu mano, cujo nome me foge) e “As maluquices do
imperador”, em que narra, de forma romanceada e deliciosa, as estripulias de
Dom Pedro I, antes de proclamar a independência do Brasil e após a proclamação,
mas antes de abdicar do trono, retornar a Portugal, derrotar seu irmão Dom
Miguel e tornar-se rei português, com o título de Dom Pedro IV.
Um dos melhores romances nessa
linha, mesmo baseado em um fato histórico exclusivamente nosso, bem brasileiro,
pitorescamente foi escrito por um estrangeiro, mais especificamente por um
peruano, tão bom escritor que recebeu, não faz muito, o Prêmio Nobel de
Literatura. O leitor arguto já percebeu a quem me refiro. É a ele mesmo, a
Mário Vargas Llosa. É imperdível o seu livro “A guerra do fim do mundo”, em que
trata da rebelião popular de jagunços no arraial de Canudos. O exército
brasileiro teve que recorrer ao que tinha de melhor em termos de armamentos e
de estratégia militar, para debelar a rebelião no sertão baiano, liderada pelo
fanático carola Antonio Conselheiro, alçado à condição de semi-divindade por
seus seguidores.
Vargas Llosa, com rara maestria,
tratou de personagens reais e criou outros tantos fictícios, porém verossímeis.
Descreveu tanto fatos históricos, fartamente documentados, sobretudo pelo
repórter especial do jornal “O Estado de São Paulo”, o engenheiro-escritor
Euclides da Cunha, quanto os que inventou e que parecem rigorosamente
verídicos, tamanha a convicção com que tratou deles. Se o escritor peruano não
houvesse escrito mais nada além de somente esse livro já justificaria o Nobel
de Literatura com que foi agraciado. Para quem aprecia textos bem escritos e
informativos (e creio que apenas os tolos e os analfabetos não apreciem),
recomendo a leitura, na sequência, de “Os sertões”, de Euclides da Cinha e a
seguir da “A guerra do fim do mundo”, de Mário Vargas Llosa. Prometo voltar
oportunamente ao tema.
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