Friday, July 25, 2014

Quando a ficção se vale da História

Pedro J. Bondaczuk

A História – aquela que é considerada ciência, baseada em documentos e em descobertas arqueológicas – tem se constituído, há muito, em farto (diria inesgotável) filão temático para ficcionistas talentosos. Não é tarefa, todavia, para qualquer um. Escritores criativos conseguem misturar personagens e situações ficcionais com fatos e vultos históricos, sem descaracterizar um e nem outro. Fazem isso mediante enredos paralelos que se cruzam (às vezes não) no desfecho. Cumprem, assim, simultaneamente, dois dos muitos objetivos da leitura: instruem e entretêm.

Há “puristas”, quer no campo da Literatura, quer (principalmente) no da História, que se opõem a esse procedimento. Argumentam que essa mistura de ficção e de realidade confunde quem lê e distorce os acontecimentos reais. Tolice. Isso vai da perícia, da competência e da criatividade de quem recorre a esse filão. Por isso, fiz a ressalva que a tarefa não é para qualquer um. É desafio para os melhores. Tenho, na minha biblioteca, dezenas de livros com essas características. Tivesse tempo e não fosse premido pelo relógio para escrever em tempo hábil essas reflexões diárias, relacionaria pelo menos as principais obras que seguem essa empolgante trilha. Como não tenho, vou meio que ao acaso e menciono alguns livros que consigo enxergar à distância nas estantes mais visíveis da minha biblioteca.

Cito, por exemplo, “Eu, Claudius, o imperador”, de Robert Graves, publicado pela Abril Cultural, com magnífica tradução de Mário Quintana. A narrativa propõe-se a ser uma espécie de “autobiografia” desse pitoresco governante romano, ridicularizado até por historiadores meticulosos e sérios, por sua deficiência física (era coxo), sua timidez e contundente gagueira. Mas, principalmente, pelas aventuras sexuais de sua insaciável esposa, Messalina. Aliás, muito do que se lê sobre essa mulher, pintada como incurável ninfomaníaca, dessas de manterem dezenas de relações sexuais num único dia e ainda quererem mais, entendo que se trate de fantasia. Como um historiador pode documentar com precisão a vida íntima, sobretudo a sexual, de determinada mulher, ainda mais se tratando da esposa de um imperador? Não pode! Baseia-se, pois, em boatos e no que conhecemos como “fofocas” a propósito. Mas daí a jurar que se trate de lídima expressão da verdade vai uma distância sem tamanho.

Aliás, a propósito dessa imperatriz romana, esposa do difamado Claudius, que no entanto tem feitos notáveis em seu currículo como poucos imperadores puderam ostentar, vislumbro, à distância, numa das prateleiras da minha biblioteca, o livro “Messalina”, escrito por Siegfried Obermeier, lançado no Brasil pela Geração Editorial. Não o interpreto como relato histórico, embora seja apresentado como sendo. Considero-o, isso sim, deliciosa obra de ficção. Pelo menos, é um livro divertido (ou pervertido?). É leitura que recomendo para os que entendem que arte (no caso Literatura) e moral são compartimentos distintos, que nada têm a ver um com o outro. Se você, caríssimo leitor, tiver um dinheirinho extra, compre esse livro. Se vai aprender algo, não posso jurar. Mas garanto que irá se divertir.

É óbvio que romances baseados em fatos históricos não se restringem aos dois que citei. Só na minha biblioteca, tenho dezenas deles. Cito, por exemplo, dois da dupla francesa Émile Erkmann e Alexandre Chatrian (sobre cuja parceria tratei aqui mesmo, neste espaço, se não me falha a memória, em 2011). Ambos escreveram, em conjunto, 21 livros, todos mais ou menos nessa linha. Os dois mais conhecidos, ambos tratando do conquistador francês Napoleão Bonaparte, têm os respectivos títulos, na versão em português de “O recruta de Napoleão” e “Waterloo”. Nesse contexto, não posso esquecer de “Guerra e paz”, de Leon Tolstoi ou de “Doutor Jivago”, de Bóris Pasternak.

No Brasil, também temos dezenas de escritores que recorreram, com sucesso, a esse inesgotável filão. Cito, por exemplo, Paulo Setúbal, de quem tenho quase toda a obra (poética e ficcional), notadamente os livros “Os irmãos Leme” (tratando da trajetória do bandeirante Fernão Dias Paes Leme e de seu mano, cujo nome me foge) e “As maluquices do imperador”, em que narra, de forma romanceada e deliciosa, as estripulias de Dom Pedro I, antes de proclamar a independência do Brasil e após a proclamação, mas antes de abdicar do trono, retornar a Portugal, derrotar seu irmão Dom Miguel e tornar-se rei português, com o título de Dom Pedro IV.

Um dos melhores romances nessa linha, mesmo baseado em um fato histórico exclusivamente nosso, bem brasileiro, pitorescamente foi escrito por um estrangeiro, mais especificamente por um peruano, tão bom escritor que recebeu, não faz muito, o Prêmio Nobel de Literatura. O leitor arguto já percebeu a quem me refiro. É a ele mesmo, a Mário Vargas Llosa. É imperdível o seu livro “A guerra do fim do mundo”, em que trata da rebelião popular de jagunços no arraial de Canudos. O exército brasileiro teve que recorrer ao que tinha de melhor em termos de armamentos e de estratégia militar, para debelar a rebelião no sertão baiano, liderada pelo fanático carola Antonio Conselheiro, alçado à condição de semi-divindade por seus seguidores.

Vargas Llosa, com rara maestria, tratou de personagens reais e criou outros tantos fictícios, porém verossímeis. Descreveu tanto fatos históricos, fartamente documentados, sobretudo pelo repórter especial do jornal “O Estado de São Paulo”, o engenheiro-escritor Euclides da Cunha, quanto os que inventou e que parecem rigorosamente verídicos, tamanha a convicção com que tratou deles. Se o escritor peruano não houvesse escrito mais nada além de somente esse livro já justificaria o Nobel de Literatura com que foi agraciado. Para quem aprecia textos bem escritos e informativos (e creio que apenas os tolos e os analfabetos não apreciem), recomendo a leitura, na sequência, de “Os sertões”, de Euclides da Cinha e a seguir da “A guerra do fim do mundo”, de Mário Vargas Llosa. Prometo voltar oportunamente ao tema.


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