Pivô da colonização
portuguesa
Pedro
J. Bondaczuk
O aventureiro
português, João Ramalho, desperta imediata e fulminante curiosidade de quem,
pela primeira vez, ouve falar a seu respeito, ou lê referências sobre suas
ações, que soam a lendas, tão inverossímeis que parecem. Aliás, é impossível
determinar o quanto do que se menciona sobre ele é realidade e o quanto é mera
ficção. Desconfio que, se não a totalidade, pelo menos mais da metade das
referências são frutos exclusivos da imaginação. Advirto-o, caríssimo leitor,
que estas considerações não são e nem se propõem a ser uma biografia. Não
disponho (e ninguém dispõe) de dados confiáveis para biografar essa figura
singular.
Há quem trate João
Ramalho como bandeirante, contudo entendo que essa caracterização é equivocada.
O que não se pode negar, no entanto, é sua contribuição (decisiva), por
exemplo, para o início da colonização do Brasil, notadamente de São Vicente,
como “braço direito” de Martim Afonso de Souza, enviado pela Coroa Portuguesa
com essa missão específica (pode-se dizer que foi o pivô desse processo,
impedindo que os índios arrasassem os primitivos núcleos colonizadores)
Mas João Ramalho,
também, foi peça fundamental para a consolidação do nascente vilarejo de São
Paulo de Piratininga, ameaçado de destruição por diversas tribos ferozes,
inimigas dos portugueses, dos jesuítas e, principalmente, dos seus costumes e
crenças, tão diferentes dos seus. O aventureiro português, seus filhos e os
silvícolas que comandava combateram sem tréguas essas hordas ameaçadoras. Não
fez isso, porém, de graça. Levou vantagens pessoais, e muitas. Afinal,
escravizou, vendeu como escravos e até devorou esses inimigos, pois consta que
era antropófago. E, se não era, fazia vistas grossas à antropofagia, que considerava
prática “natural”. O padre José de Anchieta, em uma de suas tantas cartas,
refere-se a isso. Claro que o faz, em tom de horror. Atribui tais práticas que
o horrorizavam não diretamente a João Ramalho, mas aos seus filhos mamelucos.
Este ponto, portanto, está devidamente documentado.
E não foi somente na
colonização de São Vicente e na defesa tanto desse núcleo colonial, quanto de
São Paulo de Piratininga, que João Ramalho se destacou. Fundou – consta que
apenas com filhos e netos, o que considero exagero – duas cidades: Santo André
da Borda do Campo e Taubaté. Seu relacionamento com os jesuítas foi ambíguo e,
em inúmeras ocasiões, abertamente conflituoso. Tanto que chegou a ser
excomungado, em decorrência não apenas dos seus costumes selvagens, considerados
“demoníacos”, pelos sacerdotes, mas por influenciar diretamente muitos índios
já catequizados, para que retornassem aos seus costumes originais e
abandonassem de vez a doutrina alienígena que lhes era imposta pelos europeus.
José de Anchieta, em suas cartas, menciona a destruição, por parte de João
Ramalho e dos silvícolas sob seu comando, de várias capelas.
Sobre a excomunhão, o
escritor Raimundo de Menezes assim se refere a ela, em seu excelente livro
“Aconteceu no velho São Paulo” (Coleção Saraiva, 1964): “No ano de 1553, Santo
André da Borda do Campo viveu o ponto mais alto de sua vida florescente. Então
surgiram os primeiros jesuítas: Manuel da Nóbrega e Leonardo Nunes. O segundo
ficou horrorizado com o que presenciava: a mancebia dos portugueses com as
índias e o cativeiro dos índios. Aquilo lhe pareceu pior que Sodoma e Gomorra.
E não teve dúvidas em excomungar João Ramalho. Este achou ruim. E começou a
luta, uma luta de vida e morte”.
O curioso é que, em
dado momento, o polêmico aventureiro parece ter se arrependido de tudo o que
fez, principalmente de sua oposição à doutrina católica. Tanto que se casou com
a índia Bartira, com a qual estaria amancebado há praticamente quarenta anos,
convertida ao cristianismo e que recebeu um nome cristão, após a conversão:
Isabel Dias. O mesmo ocorreu com o sogro, o cacique Tibiriçá, batizado com o
nome de Martim Afonso Tibiriçá (nome este em óbvia homenagem ao português
responsável pelo início da colonização do Brasil). Os restos mortais desse
chefe indígena estão sepultados na cripta da Catedral de São Paulo, na Praça da
Sé.
A propósito da
conversão de João Ramalho (ou de sua conciliação com a Igreja), é reveladora
uma carta do padre Manoel da Nóbrega aos superiores da ordem, datada de 31 de
agosto de 1553, endereçada do sertão de São Vicente, em que o jesuíta escreve,
em certo trecho: “João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e
tem filhas casadas com os principais homens desta capitania e todos estes
filhos são de uma índia, filha dos maiores e mais principais desta terra. De
maneira que nele, nela e em seus filhos esperamos ter grande meio para a
conversão dos gentios (...) Se o Núncio tiver poder, hajam dele dispensa
particular para este mesmo João Ramalho poder casar não obstante tivesse
conhecido outra irmã ou quaisquer outras parentas dela”. Consta que o
aventureiro português não se restringiu a manter relações sexuais com as
mulheres citadas, mas copulou com centenas de índias, que lhe teriam gerado
cerca de três centenas de filhos (há quem diga que foram muitos mais).
O importante a
ressaltar é que esta diplomática intercessão de Manoel da Nóbrega foi decisiva
para a revogação da excomunhão do aventureiro, que passaria a ser, a partir de
então, de acérrimo e implacável adversário (na verdade, inimigo) dos jesuítas,
em leal e providencial defensor deles e de sua causa. Essa inesperada
conciliação contou com a providencial e decisiva ajuda de Mbicy (conhecida,
também, como Bartira, Burtira ou Isabel Dias). Mas... esta é uma história que
fica para uma outra vez.
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