Wednesday, July 30, 2014

Pivô da colonização portuguesa

Pedro J. Bondaczuk

O aventureiro português, João Ramalho, desperta imediata e fulminante curiosidade de quem, pela primeira vez, ouve falar a seu respeito, ou lê referências sobre suas ações, que soam a lendas, tão inverossímeis que parecem. Aliás, é impossível determinar o quanto do que se menciona sobre ele é realidade e o quanto é mera ficção. Desconfio que, se não a totalidade, pelo menos mais da metade das referências são frutos exclusivos da imaginação. Advirto-o, caríssimo leitor, que estas considerações não são e nem se propõem a ser uma biografia. Não disponho (e ninguém dispõe) de dados confiáveis para biografar essa figura singular.

Há quem trate João Ramalho como bandeirante, contudo entendo que essa caracterização é equivocada. O que não se pode negar, no entanto, é sua contribuição (decisiva), por exemplo, para o início da colonização do Brasil, notadamente de São Vicente, como “braço direito” de Martim Afonso de Souza, enviado pela Coroa Portuguesa com essa missão específica (pode-se dizer que foi o pivô desse processo, impedindo que os índios arrasassem os primitivos núcleos colonizadores)

Mas João Ramalho, também, foi peça fundamental para a consolidação do nascente vilarejo de São Paulo de Piratininga, ameaçado de destruição por diversas tribos ferozes, inimigas dos portugueses, dos jesuítas e, principalmente, dos seus costumes e crenças, tão diferentes dos seus. O aventureiro português, seus filhos e os silvícolas que comandava combateram sem tréguas essas hordas ameaçadoras. Não fez isso, porém, de graça. Levou vantagens pessoais, e muitas. Afinal, escravizou, vendeu como escravos e até devorou esses inimigos, pois consta que era antropófago. E, se não era, fazia vistas grossas à antropofagia, que considerava prática “natural”. O padre José de Anchieta, em uma de suas tantas cartas, refere-se a isso. Claro que o faz, em tom de horror. Atribui tais práticas que o horrorizavam não diretamente a João Ramalho, mas aos seus filhos mamelucos. Este ponto, portanto, está devidamente documentado.

E não foi somente na colonização de São Vicente e na defesa tanto desse núcleo colonial, quanto de São Paulo de Piratininga, que João Ramalho se destacou. Fundou – consta que apenas com filhos e netos, o que considero exagero – duas cidades: Santo André da Borda do Campo e Taubaté. Seu relacionamento com os jesuítas foi ambíguo e, em inúmeras ocasiões, abertamente conflituoso. Tanto que chegou a ser excomungado, em decorrência não apenas dos seus costumes selvagens, considerados “demoníacos”, pelos sacerdotes, mas por influenciar diretamente muitos índios já catequizados, para que retornassem aos seus costumes originais e abandonassem de vez a doutrina alienígena que lhes era imposta pelos europeus. José de Anchieta, em suas cartas, menciona a destruição, por parte de João Ramalho e dos silvícolas sob seu comando, de várias capelas.

Sobre a excomunhão, o escritor Raimundo de Menezes assim se refere a ela, em seu excelente livro “Aconteceu no velho São Paulo” (Coleção Saraiva, 1964): “No ano de 1553, Santo André da Borda do Campo viveu o ponto mais alto de sua vida florescente. Então surgiram os primeiros jesuítas: Manuel da Nóbrega e Leonardo Nunes. O segundo ficou horrorizado com o que presenciava: a mancebia dos portugueses com as índias e o cativeiro dos índios. Aquilo lhe pareceu pior que Sodoma e Gomorra. E não teve dúvidas em excomungar João Ramalho. Este achou ruim. E começou a luta, uma luta de vida e morte”.

O curioso é que, em dado momento, o polêmico aventureiro parece ter se arrependido de tudo o que fez, principalmente de sua oposição à doutrina católica. Tanto que se casou com a índia Bartira, com a qual estaria amancebado há praticamente quarenta anos, convertida ao cristianismo e que recebeu um nome cristão, após a conversão: Isabel Dias. O mesmo ocorreu com o sogro, o cacique Tibiriçá, batizado com o nome de Martim Afonso Tibiriçá (nome este em óbvia homenagem ao português responsável pelo início da colonização do Brasil). Os restos mortais desse chefe indígena estão sepultados na cripta da Catedral de São Paulo, na Praça da Sé.

A propósito da conversão de João Ramalho (ou de sua conciliação com a Igreja), é reveladora uma carta do padre Manoel da Nóbrega aos superiores da ordem, datada de 31 de agosto de 1553, endereçada do sertão de São Vicente, em que o jesuíta escreve, em certo trecho: “João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais homens desta capitania e todos estes filhos são de uma índia, filha dos maiores e mais principais desta terra. De maneira que nele, nela e em seus filhos esperamos ter grande meio para a conversão dos gentios (...) Se o Núncio tiver poder, hajam dele dispensa particular para este mesmo João Ramalho poder casar não obstante tivesse conhecido outra irmã ou quaisquer outras parentas dela”. Consta que o aventureiro português não se restringiu a manter relações sexuais com as mulheres citadas, mas copulou com centenas de índias, que lhe teriam gerado cerca de três centenas de filhos (há quem diga que foram muitos mais).

O importante a ressaltar é que esta diplomática intercessão de Manoel da Nóbrega foi decisiva para a revogação da excomunhão do aventureiro, que passaria a ser, a partir de então, de acérrimo e implacável adversário (na verdade, inimigo) dos jesuítas, em leal e providencial defensor deles e de sua causa. Essa inesperada conciliação contou com a providencial e decisiva ajuda de Mbicy (conhecida, também, como Bartira, Burtira ou Isabel Dias). Mas... esta é uma história que fica para uma outra vez.


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