Amizades que nunca
acabam
Pedro
J. Bondaczuk
O conceito de amizade
nem sempre é devidamente entendido em toda sua extensão. Quando se pensa em
amigos, vem-nos, de imediato, à memória aquela pessoa a quem confidenciamos até
nossas mais secretas (e talvez escabrosas) idéias, fazemos desabafos que não
temos coragem de fazer a mais ninguém, estimamos sem reservas e nem restrições,
que freqüenta nossa casa e em cujas mãos depositamos nossa própria vida. Além
do que, somos capazes de morrer, (se necessário), por ele (ou ela, quando é o
caso), tamanha e irrestrita é a estima que lhe devotamos.
O problema não é
considerar quem está nessa condição como “irmão espiritual”. Essa, convenhamos,
é boa descrição da figura do amigo. O que é um equívoco, além de enorme injustiça,
no entanto, é não considerar de idêntica maneira quem não conviva e nunca tenha
convivido conosco. Quem não prive em momento algum da nossa companhia física.
Quem sequer conheçamos pessoalmente, principalmente porque já tenha morrido
muitos anos antes do nosso nascimento, mas que tenha profunda influência em
nossa vida. De quem conheçamos praticamente tudo e a quem estimemos como se
estivesse a todo o momento conosco, pronto a nos socorrer em qualquer
circunstância ou situação, no que podemos declarar “para o quer der e vier”. Refiro-me, neste caso, a escritores. Sim, eles são nossos amigos. Sim, eles
merecem toda nossa consideração e, sobretudo, irrestrita gratidão. Sim,
sentimos demais quando morrem, como se tivéssemos perdido algum muito amado parente.
Todavia, ao contrário
do que ocorre com os “amigos presenciais”, de cuja companhia privamos no dia a
dia, ou seja, que é constante e
permanente, quando “partem para o além”, a amizade não se encerra, como ocorre
via de regra . Pelo contrário, na maioria dos casos, até se amplia, se
consolida e se torna ainda mais onipresente. Os livros que nos legaram, e que
tanta influência tiveram em nossa vida, retêm sua alma, sem perder ínfima
fração do seu vigor e intensidade originais. Servem-nos, mais do que nunca, de
guias nas mais diversas circunstâncias e variados momentos.
Isso acaba de ocorrer
comigo. E em dose dupla, com as mortes de João Ubaldo Ribeiro e de Rubem Alves.
Foi um choque duplo, portanto. Foi uma perda multiplicada. Destarte, meu
lamento, óbvio, é na mesma proporção. Tenho, todavia, um consolo, que outros
tantos, que privaram do seu convívio, talvez não tenham. Tenho boa parte dos
tantos livros que escreveram, que mudaram certos conceitos que eu tinha e
consolidaram outros tantos, me tornando uma pessoa um pouquinho melhor. Aliás,
muitíssimo melhor.
O impacto dessas duas
mortes, porém, é tão grande, que eu, que ganho o “pão nosso de cada dia” com o
manejo de palavras, não encontro as que sejam adequadas para expressar minha
dor e o impreenchível vazio que as duas perdas me deixam agora no espírito.
Peço licença, pois, ao compreensivo leitor, para reproduzir uma crônica que
escrevi em 12 de abril de 2012, intitulada “amizades espirituais”, que
expressam a caráter o que João Ubaldo Ribeiro e Rubem Alves significaram e vão
significar sempre para mim, enquanto eu viver.
“Vocês já atentaram
para o fato de que consideramos determinados escritores – pela identidade que
temos com suas idéias, por ideais pelos quais lutam e por sua postura face à
vida – amigos, mesmo que jamais tenhamos nos visto, conversado e que sequer
eles saibam, ou mesmo desconfiem, da nossa existência? Familiarizamo-nos de tal
sorte com eles, que é como se freqüentassem nossa casa, conhecessem nossos
gostos e pensamentos, soubessem de nossos problemas e ambições, nos
aconselhassem quando conselhos se fizessem necessários, nos repreendessem (com
doçura) quando tivéssemos que ser repreendidos e satisfizessem, enfim, todas as
necessidades psicológicas, tudo o que esperamos de uma legítima, sólida e
intimíssima amizade.
Com base nesse
parâmetro, posso afirmar, com rigorosa segurança, que tenho mais, bem mais de
um milhar de amigos desse tipo. E a cada dia, acrescento mais e mais escritores
a esse círculo de amizade, sem abrir mão de um único dos que já tenho. É um
processo de permanente acréscimo no qual toda a vantagem é minha. Enriqueço
minha vida, torno-me um pouco (ou muito, sei lá) mais sábio, sem que retribua
esses ganhos em idêntica medida. Esse raciocínio vale, observo, não apenas para
escritores. Tenho essas ‘amizades espirituais’ também com atletas, cantores,
músicos, artistas plásticos ou, simplesmente, com correspondentes da internet.
Pena que não haja reciprocidade. Ou seja, que todo esse pessoal não me
considere, também, amigo (embora haja, posto que raras, exceções).
Em muitos casos (talvez
na maioria), essas amizades nem poderiam contar com a devida correspondência?
Por que? Porque essas pessoas que consideramos amigas (e ainda por cima,
íntimas) já morreram. E esse sentimento de intimidade e fraternidade é tão
intenso e profundo, que nem a morte é empecilho para que essas amizades se
preservem e se mantenham tão sólidas como quando começaram.. Ela é intemporal.
E independe de qualquer fator objetivo. Ou seja, permanece intacta além da
vida.
Mesmo depois de
falecidos, esses escritores (que, no meu caso, constituem a imensa maioria
desses ‘amigos espirituais’) permanecessem vivos, vivíssimos em nossa memória e
em nossas emoções. Seus espíritos ficam retidos nas páginas dos livros que
escreveram, nas entrevistas que deram a jornais e revistas e, ultimamente, nos
textos que, em vida, postaram na internet, em múltiplos sites e/ou blogs.
Essa chama de
genialidade nos acompanha, como anjos da guarda, como espíritos tutelares, ao
longo da nossa jornada pelo mundo. É possível, se não provável, que se um dia
cruzarmos com um desses nossos ídolos intelectuais vivos, que tanto prezamos,
em uma rua qualquer de alguma cidade, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto
Alegre, Belo Horizonte, Brasília, Recife ou, no meu caso, Campinas, passemos,
um pelo outro, com absoluta indiferença. Talvez nem nos reconheçamos. Não
descarto que isso já tenha ocorrido algum dia comigo. É possível e até
provável. Nossa identidade, reitero, não é física. É intelectual. Vou mais
longe: é espiritual.
Conhecemo-los bem
(mesmo que não haja reciprocidade), talvez melhor, até, do que seus mais
chegados parentes. Consideramo-los ‘amigos’, no sentido mais estrito de
amizade, mesmo que jamais, por alguma razão, não nos refiramos a eles dessa
maneira. Afinal, o que vem a ser amizade? Não é a identidade de idéias,
sentimentos e emoções? Não é a existência de interesses comuns? Pois então,
todos esses escritores que tanto aprecio e venero são, rigorosamente, amigos,
mesmo que não nos conheçamos pessoalmente e que não haja reciprocidade da parte
deles. Desconfio que se as circunstâncias nos aproximassem, e possibilitassem
convivência física, material, constante, tête-a-tête, esse sentimento seria
recíproco.
É tudo isso que expus,
com tamanha emoção (até visceralmente), mas pouca razão, o que sinto pelo
mexicano Octávio Paz (e acrescento hoje, a essa crônica escrita há já certo
tempo, as figuras de João Ubaldo Ribeiro e de Rubem Alves). (...) Refletindo,
hoje de manhã, sobre o que escrever neste espaço, subitamente me dei conta de
uma imensa ‘mancada’ minha em relação a estes meus ídolos.
Abordei, neste espaço
(e vocês são testemunhas), a obra, e em muitos casos a vida, de pelo menos um
milhar de escritores que fazem parte do meu imenso círculo de ‘amizades
espirituais’. Todavia... nunca, nunca mesmo redigi um só texto abordando,
especificamente, estes meus ‘amigões’. Não se trata, óbvio, de menosprezo por
eles. Talvez tenha me faltado oportunidade para essa abordagem. Sim, talvez.
Citei-os, é verdade, em algumas ocasiões, posto que apenas de passagem.
Prometo, no entanto, (a vocês e a mim mesmo) corrigir, doravante, essa
imperdoável omissão. Afinal, eles continuam vivos, vivíssimos (e mais do que
nunca) nos magníficos livros que nos legaram”.
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