Ópera bufa
Pedro J. Bondaczuk
A sucessão de acontecimentos envolvendo a América
Central cada vez mais tende a levar aquela paupérrima e violenta região do
mundo à conflagração total. Mesmo com toda a boa vontade de oito dos principais
e mais expressivos países da América Latina, entre os quais se inclui o nosso,
visando a conduzir a questão para uma solução negociada, sente-se que existem
remotíssimas esperanças de que algo assim venha a ocorrer.
O rompimento de relações, determinado
intempestivamente anteontem pelo presidente equatoriano Leon Febres Cordero,
entre o Equador e a Nicarágua, constituiu-se, possivelmente, no mais duro golpe
na ação conciliadora do Grupo de Contadora. Provavelmente será o seu "tiro
de misericórdia", que fará naufragar a maior ação diplomática conjugada já
empreendida pelos desunidos latino-americanos.
Uma das conseqüências quase certas da atitude do
Equador deverá ser a reação em cadeia dos países vizinhos à Nicarágua, El
Salvador, Costa Rica e Honduras, há muito tempo em estado de guerra não
declarada com o regime sandinista. Afinal, é em território hondurenho que se
concentram os grupos mais numerosos de guerrilheiros, treinados, mantidos e
financiados pelos Estados Unidos, ávidos pelo poder, que não vêem a hora de
entrar em Manágua para dividir os espólios da pátria. Os costarriquenhos, por
seu turno, não ficam muito atrás. Há tempos procuram um pretexto, de
preferência de caráter militar, para mostrar ao mundo que estão sendo agredidos
pelos nicaragüenses. Abrigam, também, em suas fronteiras, grupos
antissandinistas, dos quais o mais expressivo é a Arde, comandada por Éden
Pastora, que nos bons tempos em que gozava de independência, era conhecido como
"Comandante Zero".
O papel de El Salvador é mais passivo. Cabe a esse país
a tarefa de se passar por vítima ultrajada pelos sandinistas, que estariam
abastecendo de armas a sua guerrilha esquerdista, detentora de fato de mais da
metade do território salvadorenho.
Toda essa situação cheira a uma enorme farsa, uma
monumental ópera bufa, encenada por atores que nem mesmo desempenham com muita
naturalidade os seus papéis. A esse enredo, cujo desfecho parece bastante
claro, juntou-se agora um condimento mais apimentado. Um incidente diplomático,
que em situações normais não mereceria nada além de uma nota de protesto um
pouco mais dura de parte a parte. Mas nada do que se refere à América Latina
pode ser encarado dentro de parâmetros de normalidade. E isso acontece não é de
hoje.
Estranho em toda essa questão, senão sumamente suspeito,
é o fato do pronunciamento do presidente sandinista Daniel Ortega ter causado
tamanha irritação ao governo equatoriano. Afinal, foi de um pronunciamento
infeliz de Leon Febres Cordero, que criticou as eleições nicaragüenses do ano
passado (como se a sua também não fosse alvo de observações ferinas da oposição
do seu país), que nasceu a resposta de Manágua, que tanta ofensa causou em
Quito, ao ponto de determinar um rompimento de relações diplomáticas. Faltou
diplomacia, tato, bom senso e, quem sabe, independência.
É por causa desse tipo de procedimento que a América
Latina é olhada com menosprezo, e até ridicularizada, perante a comunidade
internacional. O pior de tudo é que a ópera bufa, com o jeitão de chanchada,
afeta dolorosamente milhões de pessoas pobres, descrentes, desamparadas e sem
nenhuma perspectiva que não seja assistir ainda por muito tempo (um século
mais, talvez) à sucessão de caudilhos "salvadores da pátria", que
deixam em sua passagem uma trilha assustadora de assassinatos e corrupção. É aí
que a encenação mostra toda a sua face de tragédia.
(Artigo publicado na página 18, Internacional, do
Correio Popular, em 13 de outubro de 1984)
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