Thursday, July 03, 2014

Ópera bufa


Pedro J. Bondaczuk

A sucessão de acontecimentos envolvendo a América Central cada vez mais tende a levar aquela paupérrima e violenta região do mundo à conflagração total. Mesmo com toda a boa vontade de oito dos principais e mais expressivos países da América Latina, entre os quais se inclui o nosso, visando a conduzir a questão para uma solução negociada, sente-se que existem remotíssimas esperanças de que algo assim venha a ocorrer.

O rompimento de relações, determinado intempestivamente anteontem pelo presidente equatoriano Leon Febres Cordero, entre o Equador e a Nicarágua, constituiu-se, possivelmente, no mais duro golpe na ação conciliadora do Grupo de Contadora. Provavelmente será o seu "tiro de misericórdia", que fará naufragar a maior ação diplomática conjugada já empreendida pelos desunidos latino-americanos.

Uma das conseqüências quase certas da atitude do Equador deverá ser a reação em cadeia dos países vizinhos à Nicarágua, El Salvador, Costa Rica e Honduras, há muito tempo em estado de guerra não declarada com o regime sandinista. Afinal, é em território hondurenho que se concentram os grupos mais numerosos de guerrilheiros, treinados, mantidos e financiados pelos Estados Unidos, ávidos pelo poder, que não vêem a hora de entrar em Manágua para dividir os espólios da pátria. Os costarriquenhos, por seu turno, não ficam muito atrás. Há tempos procuram um pretexto, de preferência de caráter militar, para mostrar ao mundo que estão sendo agredidos pelos nicaragüenses. Abrigam, também, em suas fronteiras, grupos antissandinistas, dos quais o mais expressivo é a Arde, comandada por Éden Pastora, que nos bons tempos em que gozava de independência, era conhecido como "Comandante Zero".

O papel de El Salvador é mais passivo. Cabe a esse país a tarefa de se passar por vítima ultrajada pelos sandinistas, que estariam abastecendo de armas a sua guerrilha esquerdista, detentora de fato de mais da metade do território salvadorenho.

Toda essa situação cheira a uma enorme farsa, uma monumental ópera bufa, encenada por atores que nem mesmo desempenham com muita naturalidade os seus papéis. A esse enredo, cujo desfecho parece bastante claro, juntou-se agora um condimento mais apimentado. Um incidente diplomático, que em situações normais não mereceria nada além de uma nota de protesto um pouco mais dura de parte a parte. Mas nada do que se refere à América Latina pode ser encarado dentro de parâmetros de normalidade. E isso acontece não é de hoje.

Estranho em toda essa questão, senão sumamente suspeito, é o fato do pronunciamento do presidente sandinista Daniel Ortega ter causado tamanha irritação ao governo equatoriano. Afinal, foi de um pronunciamento infeliz de Leon Febres Cordero, que criticou as eleições nicaragüenses do ano passado (como se a sua também não fosse alvo de observações ferinas da oposição do seu país), que nasceu a resposta de Manágua, que tanta ofensa causou em Quito, ao ponto de determinar um rompimento de relações diplomáticas. Faltou diplomacia, tato, bom senso e, quem sabe, independência.

É por causa desse tipo de procedimento que a América Latina é olhada com menosprezo, e até ridicularizada, perante a comunidade internacional. O pior de tudo é que a ópera bufa, com o jeitão de chanchada, afeta dolorosamente milhões de pessoas pobres, descrentes, desamparadas e sem nenhuma perspectiva que não seja assistir ainda por muito tempo (um século mais, talvez) à sucessão de caudilhos "salvadores da pátria", que deixam em sua passagem uma trilha assustadora de assassinatos e corrupção. É aí que a encenação mostra toda a sua face de tragédia.

(Artigo publicado na página 18, Internacional, do Correio Popular, em 13 de outubro de 1984)


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