Saturday, July 19, 2014

Persistência e teimosia

Pedro J. Bondaczuk

A observação atenta do comportamento das pessoas é excelente exercício, útil, se não indispensável, ao escritor, notadamente ao que se dedica a obras de ficção. É precioso subsídio na elaboração de personagens autênticos, verossímeis, de carne e osso e não de figuras caricatas e falsas, exageradas na prática do bem ou do mal, como muito ficcionista preguiçoso, ou desatento, faz. Um colega, com o qual comentei isso, disse que se sente constrangido em agir dessa maneira, com receio de ser interpretado como “bisbilhoteiro”. Mas, afinal, o que somos nós, escritores, se não mestres em bisbilhotices? Isso mesmo! Claro que nossas observações, por questão até de prudência, não precisam ser escandalosas, ostensivas e escancaradas. O melhor é que sejam discretas, até por razões práticas. Assim poderemos flagrar as pessoas que estivermos observando em seu natural, sem que dissimulem nada e não representem o que não são.

Confesso – e se isso for errado, incorro nesse erro o tempo todo, embora não entenda que seja assim e até recomende esse exercício a quem se propõe atuar nesse campo tão delicado e complicado que é a literatura – que observo tudo e todos. E não me limito a observar. Anoto o que me chama a atenção pelo inusitado e utilizo esse conhecimento, não apenas em contos, gênero de minha predileção, mas em textos de não ficção, notadamente em crônicas e ensaios. Afinal de contas, o que somos nós, escritores?  Não passamos de pessoas que escrevem sobre pessoas para outras pessoas lerem. Ou não é assim?

Entre as características que admiro, quando detecto em alguém, destaco a persistência. Há que se distinguir, todavia, esse comportamento – que é uma virtude – de outro bastante similar, mas que é um defeito até bastante comum: a teimosia. Muitos consideram essas duas palavras como sinônimas. Discordo. Não são! Persistente é o sujeito que trilha um caminho difícil, se propõe a alcançar um objetivo aparentemente superior às suas forças, que ele tem certeza de ser o correto e positivo e, por isso, nunca desiste, sejam quais forem os obstáculos que tem que superar, principalmente face circunstâncias desfavoráveis. “Teimosia não é também isso?!, perguntará, atônito, o leitor desavisado. Quase. Parece, mas não é. A diferença está no fato do teimoso persistir em determinada prática que sabe ser ruim para si ou para terceiros, mas que ainda assim não desiste. E teima sem nenhuma razão racional e objetiva. Como se vê, a diferença é sumamente sutil, mas os resultados tendem a ser gritantemente diferentes.

Já criei personagens dos dois tipos, ou seja, persistentes e teimosos. E por mais que forçasse, foi impossível criar para o segundo um desfecho positivo, alguma vitória marcante, enfim, um “happy end”. Soaria ilógico se o fizesse. E seria. Victor Hugo escreveu: "Todo o segredo dos grandes corações está nesta palavra: 'perseverar'. A constância diz que espécie de homem há dentro de nós, qual é a nossa personalidade e a dimensão da nossa coragem. Os constantes são os sublimes. Quem é apenas bravo tem só um assomo, quem é apenas valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o tenaz, porém, tem a grandeza".

Tenacidade, apresso-me a esclarecer, é sinônimo de persistência. Só ela conduz ao verdadeiro heroísmo. E este consiste em vencermos nossas deficiências (o que não ocorre com o teimoso) e em conquistarmos os nossos sonhos... Persistir, persistir e persistir. Este é o segredo dos vencedores. Nunca devemos desistir do que tenhamos plena convicção que signifique evolução, notadamente a espiritual. Poucos, pouquíssimos, ostentam essa virtude. Já a teimosia... Brota por aí como praga, como tiririca em um gramado nobre. Bravura, valentia e coragem de nada valem sem a tenacidade, sem a capacidade de nunca desistir enquanto houver remota chance de sucesso em algum de nossos tantos empreendimentos. Já a teimosia...

O reverendo norte-americano Norman Vincent Peale, de tantas e positivas mensagens em seus inúmeros livros e sermões, observou: "Uma das coisas mais simples sobre a arte de viver é que para chegar aonde desejamos é preciso persistir na persistência".  Notem que não recomendou que persistamos na teimosia. A poetisa norte-americana Ella Wheeler Wilcox, por seu turno, acentua: "O homem é o que ele pensa. Não o que diz, lê ou ouve. Mediante persistente pensar podemos desfazer qualquer condição que exista. Podemos libertar-nos de quaisquer cadeias, quer da pobreza, quer do pecado, da doença, da infelicidade ou do medo". E Michael Drury vai mais longe: "Podemos não ter os dotes necessários para construir uma ponte, compor um poema, ou descobrir uma nova estrela; mas se quisermos viver nossa vida com profundidade e espírito criador, precisamos trabalhar incessantemente para expressar o nosso próprio conceito do que significa estar vivo". Temos, em suma, que "persistir na persistência".

Sempre que trago o tema à baila, vem-me à lembrança a “Parábola do semeador”, que Jesus Cristo utilizou para ilustrar o valor da persistência em espalhar mensagens sadias e construtivas. De acordo com a alegoria do Bom Rabi, determinado lavrador lançou, primeiro, sua semente por entre as pedras. Mesmo tendo germinado, a planta embrionária não tinha como fixar raízes, dada a rigidez do solo. Não havia humus. Inexistia a umidade. Faltavam, portanto, o alimento e a água. Dessa forma, ou os pássaros devoraram o que foi semeado, ou o sol crestou a semente, a inutilizando. A segunda foi lançada sobre a areia, em meio a urzes. Germinou, fixou raízes, mas estas não tinham firmeza. Um simples vento arrancou a planta em formação, matando-a ou as ervas daninhas sufocaram-na. A terceira semente, no entanto, caiu em terra fértil. Germinou, radicou-se, desenvolveu-se, cresceu e frutificou.

Assim são as mensagens espalhadas pelos idealistas (e pelos escritores). Têm que ser múltiplas e semeadas incansavelmente. Mesmo assim há riscos de nenhuma delas vingar. Compete ao semeador tentar, tentar e tentar indefinidamente, enquanto viver. Ou seja, persistir na persistência. É o que faço e que pretendo fazer enquanto tiver força, lucidez e vida. Em alguma hora a semente haverá de cair em terra fértil e propiciar generosa colheita. Isso é persistência. Sou interpretado, amiúde, como teimoso, até mesmo como turrão. O que faço, no entanto, não se trata de teimosia: é persistência. Mera questão semântica, simples sofisma ou filigrana vocabular? Para alguns, sim. Para mim, não.


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