Dúvidas e mais dúvidas,
mas nenhuma certeza
Pedro
J. Bondaczuk
A vida de João Ramalho
é impossível de ser relatada em forma de biografia, daquelas sérias e com
credibilidade, mesmo que relativa, das baseadas em documentos e em testemunhos
de contemporâneos. Há longos períodos de tempo em que não se sabe o que fez, com
quem esteve, para onde foi ou deixou de ir, para dizer o mínimo. Isso, a
começar pelos 19 anos que teria vivido em Portugal, antes de embarcar com
destino ao Novo Mundo.
Quem foram os seus
pais? Qual a razão de seu sobrenome ser diferente do da sua suposta família?
Quando se casou com Catarina Fernandes, se é que se casou mesmo com ela? Como
se vê, são informações imprescindíveis em qualquer biografia que se preze e que
não dispomos. Quem se propuser a escrever sobre João Ramalho, portanto, tem que
fazê-lo exatamente como eu me propus a fazer, no projeto a que já me referi,
que conta com atraso de dezessete anos. Ou seja, em forma de ficção, de
romance, preenchendo os vazios de referências mesmo que contraditórias com
criatividade, com imaginação, com coisas que “poderiam” ter acontecido, mas que
ninguém sabe e jamais saberá se aconteceram.
Para ser honesto com o
leitor, todavia, o escritor que se dispuser a encarar esse desafio, tem a
obrigação moral de esclarecer que não se trata de nenhuma biografia. Que o tal
livro é de ficção, embora baseado “em fatos reais” (só alguns, óbvio). Ademais,
quem recorrer a essa fórmula não estará sequer sendo original. Há muitos, pelo
menos algumas dezenas de romances por aí com as mesmíssimas características.
Algum dia ainda lhes apresentarei uma relação deles.
Mas voltando a João
Ramalho, sabe-se que ele deixou Portugal em 1512, embarcado em um navio
mercante, rumo às terras recém descobertas do que viria a ser algum dia o
Brasil. E aqui surgem diversas novas dúvidas. Ele foi degredado, como asseguram
algumas fontes, pelo fato de ser judeu e de se recusar a se converter à fé
cristã? Se foi o caso, teve muita sorte. A Inquisição não costumava ser tão
benevolente com seus infelizes réus. Em geral, estes eram intensamente interrogados,
não raro torturados para confessar até o que não eram e não fizeram (pudera), e
caso não convencessem os inquisidores ou se recusassem a se converter, poderiam
ir parar em fogueiras (o que era
sumamente freqüente). Isso se resistissem às torturas e não morressem antes,
claro. Por isso, não creio que tenha sido esse o motivo da partida de João
Ramalho de Portugal.
Em meu romance,
pretendo pintá-lo como um jovem irrequieto, ávido por aventuras, que se dispõe
a seguir para o Novo Mundo em busca de fortuna fácil, como tantos outros
aventureiros miseráveis do seu tempo. Creio que seja a versão mais verossímil.
Ou, quem sabe, embora casado, o rapaz tenha se envolvido com outra mulher e
despertado a ira dos pais dela? Pode ser! Não se pode descartar essa hipótese,
que entendo, até, muito plausível. Afinal, João Ramalho deve ter sido uma
figura fascinante, bem apessoada, imponente e encantadora, Np sentido de
sedução, caso contrário não conseguiria, no Brasil, encantar tantas índias, a
ponto de se casar com uma delas (e justo a filha de um cacique) e de gerar três
centenas de filhos com tantas outras. Haja potência para tanto! O cara devia
ser um garanhão de marca, um reprodutor como raros. Desconheço, na História, e
não somente do País, outro personagem com tamanho apetite sexual e tanta
fecundidade. Nem os sultões de narrativas como as “Mil e uma noites” foram
páreos para esse ousado (e sortudo) português.
Definido esse ponto,
sobre o motivo de João Ramalho ter deixado Portugal, supondo ser correto o fato
disso se dever a ânsia por aventuras, surgem muitos outros “furos” nessa
pretendida narrativa. O primeiro, logo de cara, é o que trata da duração de sua
viagem. Os historiadores citam (e nisso são unânimes) que o navio em que o
rapaz viajava naufragou na costa de onde seria mais tarde a Capitania de São
Vicente, em 1513. Sabe-se, porém, que o trajeto entre Portugal e o Brasil,
mesmo com a precariedade dos navios de então, não durava tanto, ou seja, um
ano. A duração máxima, pelo que se depreende de pesquisas, era de dois meses, e
isso enfrentando as piores condições, como calmarias e brutais tempestades, por
exemplo. Onde a embarcação de João Ramalho esteve nos outros dez meses, se é
que esteve? Isso, historiador algum jamais se aventurou nem mesmo a especular.
Outro grande hiato (e
esse longuíssimo, dos mesmos 19 anos que o aventureiro tinha ao deixar
Portugal) se refere ao período posterior a 1513 (supondo ser este, de fato, o
ano do naufrágio da embarcação) e 1532, quando recepcionou Martim Afonso de Souza,
que havia recém assumido a tarefa de colonização do Brasil. O que fez nesse
tempo? Onde esteve? Como e com quem viveu? Mistério. Insondável mistério. É
outro ponto a ser preenchido por um hábil romancista com peripécias mil, com
tudo o que conseguir imaginar. Sobre esse aludido encontro entre a autoridade
da Coroa e o estranho aventureiro, Raimundo Menezes assim se refere a ele, em
seu livro “Aconteceu no velho São Paulo” (Coleção Saraiva, 1964): “Quando
Martim Afonso de Souza aportou em São Vicente, pela altura de 1532, foi
recebido, para sua surpresa, por dois patrícios, que aqui se encontravam já a
longo tempo: Antonio Rodrigues e João Ramalho”.
Como se vê, embora seja
impossível escrever uma biografia minimamente exata, que mereça esse nome, sobre
esse estranhíssimo personagem da História do Brasil, se pode escrever muita
coisa a seu propósito, no mínimo para um extensíssimo livro de ensaios, mesmo
que se trate de registrar, somente, dúvidas despertadas pelas versões que
circulam sobre ele. Imaginem que big romance tudo isso pode originar!
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