Trajetória de um mestre
do conto
Pedro
J. Bondaczuk
A memória de boa parte
dos leitores (desconfio que da maioria) é bastante cruel em relação aos bons
escritores, não importa de que época ou de que país. Claro, não se pode
generalizar. Nem todos são assim. Aliás, essa fragilidade mental, essa
relutância em lembrar dos feitos e das obras, notadamente daqueles que nos proporcionaram bons momentos
artísticos – mas também em outros campos de atividade (diria, em todos) –, essa
espécie, digamos, de amnésia em relação aos que merecem ser sempre lembrados,
mas que nem sempre o são, é citada como uma das características do
comportamento do brasileiro. Discordo. Trata-se de algo comum e usual em
qualquer pessoa, sem distinção, portanto, óbvio, de nacionalidade.
E por que trago esse
assunto à baila? Porque percebo que bons escritores, que fizeram muito sucesso
enquanto vivos, que receberam inúmeros prêmios literários pela qualidade do que
produziram, estão, hoje, virtualmente esquecidos, no ostracismo, e apenas um ou
outro, e mesmo assim incidentalmente, é mencionado, aqui ou acolá, quase que ao
acaso. É o que, conforme minha percepção, entendo que esteja ocorrendo com o
personagem de hoje, desta série de estudos que me propus a fazer sobre os
excelentes ficcionistas baianos. Refiro-me a Ariovaldo Magalhães Matos, o terceiro
contista selecionado para compor a antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR,
1963), que tomei como referencial para proceder a estas pesquisas que partilho
com vocês.
A memória desse
escritor, nascido em 24 de agosto de 1926 e que morreu, prematuramente, em 8 de
julho de 1988, aos 61 anos de idade, merece, pela qualidade da sua obra e pelos
exemplos de vida que deu, melhor sorte. Foi, sobretudo, um lutador. Viveu o que
escreveu. Foi ativista político e pagou alto preço por isso. Em virtude de sua
militância, por exemplo, foi preso, em 1964, no início do período que seria
conhecido, mais tarde, como “anos de chumbo”, aquele de 22 anos de ditadura
militar que tanto atraso e aflição trouxe para toda uma geração no Brasil.
Permaneceu pouco tempo na prisão, é verdade. Aliás, foi no cárcere que escreveu
o que considero o seu melhor livro, “Últimos sinos da infância”, publicado um
ano depois, já em liberdade, em 1965. A essa altura, já era referencial na
ficção baiana. Tanto que, em 1963, teve seu conto “A doce lei dos homens",
extraído do livro de título parecido, mas de sentido inverso, “A dura lei dos
homens”, selecionado para integrar a antologia que serve de referência para
estes estudos.
Essa obra, por sinal, é
tão boa, que valeu a Ariovaldo Matos o prêmio da Câmara Municipal de Salvador,
em disputa com os melhores escritores da cidade naquela ocasião. E estes eram
muitos e todos consagrados. Aliás, premiado ele foi diversas vezes, e não
somente como competente e criativo contista. Afinal, foi, também, festejado e
requisitado autor teatral, tendo diversas de suas peças encenadas, com sucesso,
não somente na capital do seu Estado – sua terra natal, pois era soteropolitano
de nascimento – mas nos palcos de várias outras partes do País, principalmente
de São Paulo e do Rio de Janeiro. Sua estréia literária, todavia, ocorreu com
um romance, “Corta braço”, publicado em 1955. Essa história foi, praticamente,
toda ela baseada em sua experiência como militante político.
Ariovaldo Matos passou
toda sua vida ativa, a partir de 1941, quando contava com apenas quinze anos de
idade, dividido primeiro entre o jornalismo e a literatura e, posteriormente,
entre estas duas atividades e o teatro. Como jornalista, chegou a ser
considerado uma das figuras mais representativas da imprensa baiana, em
especial quando exerceu a função de chefe de reportagem do “Jornal da Bahia”.
Como escritor de ficção, destacou-se por seus contos, centrados, basicamente,
em duas temáticas: crítica social, política e cultural e a condição humana, nas
mais variadas perspectivas. Seus enredos não são do tipo dos que se destinam a
meramente entreter o leitor. São, isto sim, para induzi-lo à reflexão.
Entre os prêmios que
conquistou, como ficcionista, destaco o Xavier Marques, instituído pelo governo
do Estado da Bahia, referente ao ano de 1967, com a novela “As aventuras do
senador Tônio Petrucci”. No teatro, obteve o segundo lugar no Prêmio Jorge
Amado para Dramaturgia, da Fundação Teatro Castro Alves. Isso, também, em 1967,
um dos anos de maior sucesso na sua carreira. A peça premiada, “A escolha, ou o
desembestado”, foi um conto adaptado, constante do seu livro “Últimos sinos da
infância”. A partir daí, tomou gosto pelo teatro. E escreveu, entre outras
peças, “A engrenagem” “O ringue” e “Todos
foram heróis cada qual ao seu modo”. Por causa da sua linguagem, considerada
anárquica e grosseira, Ariovaldo Matos teve várias de suas produções teatrais
“mutiladas” pela censura, que na época prestava enorme desserviço à arte e à
cultura nacionais, “emburrecendo” a sociedade. Algumas de suas obras
dramatúrgicas tiveram extensos trechos suprimidos pelos ignorantes censores.
Ariovaldo Matos
publicou, ainda, dois romances: “Os dias do medo”, em 1979, abordando os “anos
de chumbo” da ditadura militar, de triste memória para o País; e “Anjos
calados”, publicação póstuma ocorrida dezoito anos após sua morte, em 2006.
Todavia, sem desmerecer sua produção em outros gêneros, considero-o, antes e
acima de tudo, um dos melhores contistas e não apenas da Bahia, mas do País.
Seu último livro de contos, “Colagem desvairada em manhã de Carnaval”, foi
publicado em 1981. Pena que não deu sequência, a partir daí, à criação de
histórias deliciosas, profundamente humanas e, sobretudo, verossímeis, nesse
gênero em que era mestre e que é o de minha predileção em Literatura. Por tudo
o que ele fez, e pelo que foi, Ariovaldo Matos não merece ser ignorado pelos
leitores da nova geração. E muito menos esquecido por quem quer que seja.
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