Tuesday, January 14, 2014

Trajetória de um mestre do conto

Pedro J. Bondaczuk

A memória de boa parte dos leitores (desconfio que da maioria) é bastante cruel em relação aos bons escritores, não importa de que época ou de que país. Claro, não se pode generalizar. Nem todos são assim. Aliás, essa fragilidade mental, essa relutância em lembrar dos feitos e das obras, notadamente daqueles  que nos proporcionaram bons momentos artísticos – mas também em outros campos de atividade (diria, em todos) –, essa espécie, digamos, de amnésia em relação aos que merecem ser sempre lembrados, mas que nem sempre o são, é citada como uma das características do comportamento do brasileiro. Discordo. Trata-se de algo comum e usual em qualquer pessoa, sem distinção, portanto, óbvio, de nacionalidade.

E por que trago esse assunto à baila? Porque percebo que bons escritores, que fizeram muito sucesso enquanto vivos, que receberam inúmeros prêmios literários pela qualidade do que produziram, estão, hoje, virtualmente esquecidos, no ostracismo, e apenas um ou outro, e mesmo assim incidentalmente, é mencionado, aqui ou acolá, quase que ao acaso. É o que, conforme minha percepção, entendo que esteja ocorrendo com o personagem de hoje, desta série de estudos que me propus a fazer sobre os excelentes ficcionistas baianos. Refiro-me a Ariovaldo Magalhães Matos, o terceiro contista selecionado para compor a antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, 1963), que tomei como referencial para proceder a estas pesquisas que partilho com vocês.

A memória desse escritor, nascido em 24 de agosto de 1926 e que morreu, prematuramente, em 8 de julho de 1988, aos 61 anos de idade, merece, pela qualidade da sua obra e pelos exemplos de vida que deu, melhor sorte. Foi, sobretudo, um lutador. Viveu o que escreveu. Foi ativista político e pagou alto preço por isso. Em virtude de sua militância, por exemplo, foi preso, em 1964, no início do período que seria conhecido, mais tarde, como “anos de chumbo”, aquele de 22 anos de ditadura militar que tanto atraso e aflição trouxe para toda uma geração no Brasil. Permaneceu pouco tempo na prisão, é verdade. Aliás, foi no cárcere que escreveu o que considero o seu melhor livro, “Últimos sinos da infância”, publicado um ano depois, já em liberdade, em 1965. A essa altura, já era referencial na ficção baiana. Tanto que, em 1963, teve seu conto “A doce lei dos homens", extraído do livro de título parecido, mas de sentido inverso, “A dura lei dos homens”, selecionado para integrar a antologia que serve de referência para estes estudos.

Essa obra, por sinal, é tão boa, que valeu a Ariovaldo Matos o prêmio da Câmara Municipal de Salvador, em disputa com os melhores escritores da cidade naquela ocasião. E estes eram muitos e todos consagrados. Aliás, premiado ele foi diversas vezes, e não somente como competente e criativo contista. Afinal, foi, também, festejado e requisitado autor teatral, tendo diversas de suas peças encenadas, com sucesso, não somente na capital do seu Estado – sua terra natal, pois era soteropolitano de nascimento – mas nos palcos de várias outras partes do País, principalmente de São Paulo e do Rio de Janeiro. Sua estréia literária, todavia, ocorreu com um romance, “Corta braço”, publicado em 1955. Essa história foi, praticamente, toda ela baseada em sua experiência como militante político.

Ariovaldo Matos passou toda sua vida ativa, a partir de 1941, quando contava com apenas quinze anos de idade, dividido primeiro entre o jornalismo e a literatura e, posteriormente, entre estas duas atividades e o teatro. Como jornalista, chegou a ser considerado uma das figuras mais representativas da imprensa baiana, em especial quando exerceu a função de chefe de reportagem do “Jornal da Bahia”. Como escritor de ficção, destacou-se por seus contos, centrados, basicamente, em duas temáticas: crítica social, política e cultural e a condição humana, nas mais variadas perspectivas. Seus enredos não são do tipo dos que se destinam a meramente entreter o leitor. São, isto sim, para induzi-lo à reflexão.     

Entre os prêmios que conquistou, como ficcionista, destaco o Xavier Marques, instituído pelo governo do Estado da Bahia, referente ao ano de 1967, com a novela “As aventuras do senador Tônio Petrucci”. No teatro, obteve o segundo lugar no Prêmio Jorge Amado para Dramaturgia, da Fundação Teatro Castro Alves. Isso, também, em 1967, um dos anos de maior sucesso na sua carreira. A peça premiada, “A escolha, ou o desembestado”, foi um conto adaptado, constante do seu livro “Últimos sinos da infância”. A partir daí, tomou gosto pelo teatro. E escreveu, entre outras peças, “A engrenagem”  “O ringue” e “Todos foram heróis cada qual ao seu modo”. Por causa da sua linguagem, considerada anárquica e grosseira, Ariovaldo Matos teve várias de suas produções teatrais “mutiladas” pela censura, que na época prestava enorme desserviço à arte e à cultura nacionais, “emburrecendo” a sociedade. Algumas de suas obras dramatúrgicas tiveram extensos trechos suprimidos pelos ignorantes censores.

Ariovaldo Matos publicou, ainda, dois romances: “Os dias do medo”, em 1979, abordando os “anos de chumbo” da ditadura militar, de triste memória para o País; e “Anjos calados”, publicação póstuma ocorrida dezoito anos após sua morte, em 2006. Todavia, sem desmerecer sua produção em outros gêneros, considero-o, antes e acima de tudo, um dos melhores contistas e não apenas da Bahia, mas do País. Seu último livro de contos, “Colagem desvairada em manhã de Carnaval”, foi publicado em 1981. Pena que não deu sequência, a partir daí, à criação de histórias deliciosas, profundamente humanas e, sobretudo, verossímeis, nesse gênero em que era mestre e que é o de minha predileção em Literatura. Por tudo o que ele fez, e pelo que foi, Ariovaldo Matos não merece ser ignorado pelos leitores da nova geração. E muito menos esquecido por quem quer que seja.


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