Saturday, January 25, 2014

Original, pitoresco e, talvez, único

Pedro J. Bondaczuk

O nome é exótico, original, possivelmente único. Para alguns, isso é uma vantagem, pois facilitaria a memorização. Para outros, porém, esse é um aspecto que lhe é desfavorável. Tanto que é conhecido em toda a Bahia e, principalmente, em Salvador, como Mestre Didi. Refiro-me a um dos maiores ficcionistas baianos, Dioscóredes Maximiliano dos Santos, cujo conto, “O garoto e o cachorro encantado”, é o quinto, na ordem de publicação, na antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, 1963), que tomei por base para esta série de estudos sobre a nata dos escritores de ficção desse Estado, que forneceu (e fornece) à Literatura nacional tantos e tão bons artistas da palavra.

É possível que seu nome, tão diferente e, sem dúvida, exótico, não seja o único. Eu não conheço nenhum outro que se chame assim, mas... nunca se sabe. De uma coisa, porém, eu tenho “quase” certeza (pois certos, de fato, absolutamente convictos, nunca podemos estar, e a propósito de nada), que não há nenhum outro escritor chamado Dioscóredes. Não, pelo menos, minimamente conhecido. Este, porém, não é o aspecto mais relevante que cerca essa figura tão original. Há muitos e muitos outros. Antes de entrar no assunto que nos interessa, ou seja, seu estilo literário e sua temática, o que abordarei no seu devido tempo, é interessante lembrar algumas coisas pitorescas e, no mínimo, inusuais, que cercam esse original homem de letras baiano.

Destaque-se que se trata de escritor negro. Bem, o leitor poderá argüir-me, com razão: “No que isso tem de originalidade, quando se sabe que o Brasil produziu dezenas de escritores negros, ou mulatos?”. E citará, certamente, nomes como Lima Barreto, João Cruz e Souza, Machado de Assis e um punhado de outros mais. Todavia, há que se reconhecer que isso é relativamente raro, em um país tão injusto e preconceituoso, como é o Brasil e que conta, conforme censo do IBGE, com população majoritariamente composta de descendentes de africanos, mesmo que essa descendência seja remota. Ou será que estou inventando algo que não possa ser facilmente comprovado? Claro que não!

Tido bem, Dioscóredes não é o “único” (e em momento algum afirmei que era) escritor negro, nem do País, e muito menos da Bahia. Mas é o único, pelo menos dos que conheço, que tem como tema “exclusivo” a cultura, as artes e as tradições trazidas há alguns séculos da África e assimiladas por todos os brasileiros, indiferentemente de sua cor, sexo, raça, condição econômica ou situação social etc.etc.etc. incorporando-se ao nosso comportamento cotidiano, à nossa forma de falar, de comer, de pensar etc. e, sobretudo, à nossa maneira peculiar de ser. E isso em ficção e não-ficção. Sua relativamente vasta obra, constituída de 14 livros, é toda, rigorosamente toda voltada a essa temática. Não conheço nenhum outro escritor que tenha feito o mesmo. Você conhece?

Querem outra originalidade de Dioscoredes? É o único sacerdote de culto nagô que também é escritor (e dos mais cultos e preparados). O Brasil e, sobretudo, a Bahia, conta com dezenas, talvez centenas ou, quem sabe milhares, de pais e mães de santo. Quantos deles, porém, se dedicam, simultaneamente, à Literatura? Eu não conheço nenhum. Você conhece? Todos eles estão familiarizados e convivem com um universo de magia e riqueza ancestral em que se revela “o saber do povo”, conforme Jorge Amado observou. Porém, a transmissão que fazem de tudo isso, de uma geração a outra, é feita de forma oral, com o risco de se perder muita coisa e de outras tantas serem deturpadas. Afinal, como diz o povão, “quem conta um conto, aumenta um ponto”. Dioscorodes, no entanto, faz isso por escrito. A salvo, portanto, de ambigüidades e deturpações.

Quando Mestre Didi escreve sobre aspectos desse culto e da cultura afro, em geral, o faz com absoluto conhecimento de causa. E sequer citei o fato dele ser, também, singular e original escultor, que ilustra o que escreve com esculturas apropriadas, que ajudam a fixar sua escrita na mente de quem lê. Giovanna Soalheiro Pinheiro, graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, escreve o seguinte, a propósito de Dioscoredes Maximiliano dos Santos: “Didi, nascido e criado na Bahia, é um dos maiores expoentes das tradições negras em nosso país. É nítida a estética vinculada às suas heranças, como ervas medicinais, búzios, contas e outros elementos sagrados formando um mundo densamente mágico e poético. O autor é, na verdade, um ‘sacerdote-artista’, senhor reinante na terra, cultor das fontes imemoriais e guardião dos mistérios inerentes à ancestralidade do seu povo”.

Talvez a melhor definição de Dioscoredes foi a dada por sua esposa, Juana Elbein dos Santos (renomada antropóloga e companheira de todas as viagens ao exterior, aos países da África, Europa e Américas, como destaca a enciclopédia eletrônica Wikipédia), que escreveu: “Mestre Didi... exprime, através da criação estética, uma arraigada intimidade com seu universo existencial, onde ancestralidade e visão de mundo africanos se fundem com sua experiência de vida baiana. Completamente integrado ao universo nagô de origem yorubana, revela em suas obras uma inspiração mítica material. A linguagem nagô com a qual se expressa é o discurso sobre a experiência do sagrado, que se manifesta por meio de uma simbologia formal de caráter estético”.


Por último, cito outra “originalidade” na vida de Deoscoredes (poderia mencionar dezenas de outras), esta ligada à sua família. Sendo ele o porta-voz da cultura africana e tendo por esposa uma antropóloga com os mesmos interesses, seria de se esperar que a filha seguisse o mesmo caminho ou pelo menos correlato. Contudo... não segue. Inaicyra Falcão dos Santos é cantora lírica! É graduada em dança pela Universidade Federal da Bahia, embora, também, seja professora doutora e pesquisadora das tradições africano-brasileiras, na educação e nas artes performáticas no Departamento de Artes Corporais de uma das maiores universidades do mundo, a tradicional e reputada Unicamp, aqui de Campinas.

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