Ponte entre duas
culturas
Pedro
J. Bondaczuk
O “sacerdote-artista”
Deoscoredes Maximiliano dos Santos – que além de líder religioso de culto nagô
é, também, artista plástico e escultor – ou, Mestre Didi, como queiram e como é
mais conhecido, é um escritor nitidamente de ficção. Talvez o leitor estranhe
essa conceituação quando souber que quase metade de sua obra, ou seja, seis dos
catorze livros que publicou, é de não-ficção. Ainda assim, tem que ser
considerado como ficcionista, que “elegeu” o conto como o gênero em que se
especializou. Os outros livros seus, em sua grande maioria, embora não
ficcionais, têm alguma relação com as histórias que escreveu. Talvez as
exceções sejam “Democracia e diversidade humana. Desafio contemporâneo” e
“Pluralidade cultural e educação”.
As quatro outras
publicações têm, de uma maneira ou de outra, algum tipo de relação com os
contos que escreveu. Elas são, a saber: “Yorubá tal qual se fala” (1950),
“Porque Oxalá usa ekodidé” (1966), “História da criação do mundo” (1988) e
“Nossos ancestrais e o terreiro”. A leitura desses livros permite entendimento maior
dos seus relatos ficcionais, porquanto os contextualiza. Para mim, Deoscoredes
estabelece uma espécie de poonte entre duas ricas e relativamente ignoradas
culturas: uma antiqüíssima, a africana e outra ainda em formação, a brasileira.
Seu principal mérito é o fato de manter-se rigorosamente fiel à temática que
elegeu, ou seja, a da cultura negra, dos dois lados do Atlântico, com seus
mitos, lendas e pitorescas histórias que ele tão habilmente elaborou.
Se me pedissem para
eleger apenas um único dos seus livros de contos, como sendo o melhor, eu não
saberia qual escolher. Todos eles mantêm o mesmo padrão de qualidade, embora
escritos com intervalos às vezes de dez, quinze e até de vinte anos um do
outro. É uma uniformidade qualitativa rara em qualquer escritor, o que faz dele
o que é: um dos melhores contistas da Bahia, Estado que produziu tantos e tão
magníficos autores do gênero, e do País, que produziu e produz em muito maior
quantidade.
Dois de seus livros
foram publicados, em língua estrangeira, fora do Brasil: “Xangô, el guerrero
conquistador y otros cuentos de Bahia” (que não tem versão em português e foi
editado pelas Ediciones Silva Diaz, de Buenos Aires, em 1987) e “Contes noirs
de Bahia” (com tradução francesa de Lyne Stone, lançado, em Paris, pela Editora
Karthale, igualmente em 1987). Reportagens a seu respeito, enfatizando sua
dedicação ao resgate da cultura negra no Brasil, foram publicadas em diversos
jornais e revistas da Europa, da África e das Américas, nos países em que
passou em viagens de estudo feitas na companhia da esposa, a renomada
antropóloga Joana Elbein dos Santos.
Seus outros livros de
contos publicados no Brasil são: “Contos negros da Bahia” (Edições GDR, 1961),
“História de um terreiro nagô” (Editora Max Limonad, 1988), “Contos de nagô”
(Edições GDR, 1963), “Contos crioulos da Bahia” (Editora Vozes, Petrópolis-RJ,
1976) e “Contos de Mestre Didi” (Editora Codecri, Rio de Janeiro, 1981).
Eu poderia escrever
muito sobre o estilo peculiar de Deoscoredes Maximiliano dos Santos de narrar,
de criar personagens, de urdir cenários e situações em suas histórias, mas não
o farei. Para os que o conhecem, essas informações seriam redundantes e
repetitivas. E, para os que não têm esse privilégio, recomendo que preencham
essa lacuna lendo, eles mesmos, seus livros, que ganharão muito mais do que com
enfadonhas teorizações. Mas, para não deixar estes últimos na mão, reproduzo
alguns trechos do excelente trabalho de Giovanna Soalheiro Pinheiro, graduada
em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, no ensaio “Mestre Didi:
entre o mito e a palavra falada”:
“ (,,,) Os contos são
ora pedagógicos, ora satíricos, referindo-se, em seu sentido alegórico, aos
costumes humanos. Na obra de Mestre Didi não é muito explícita a percepção
diferencial entre mitos, lendas e fábulas, visto que há a confluência entre
elementos históricos, sagrados e simbólicos. Pode-se afirmar apenas que alguns
fatores de diferenciação, como por exemplo, o comparecimento de animais,
determinam, em maior ou menor grau, tais classificações”. Dioscoredes,
frequentemente, faz associações entre o folclore brasileiro e os mitos
africanos, que ele próprio constrói. Exemplo disso é o que faz entre entes
míticos como o nosso “Caipora” e Ossain, proveniente da África.
A esse propósito,
Giovanna assinala, no seu citado ensaio: “A aproximação entre os dois seres
lendários revela a riqueza e a universalidade dos mitos e lendas das várias
tradições, sendo possível notar a presença desse sincretismo cultural em vários
contos do autor aqui estudado”. E, para completar esse raciocínio, reproduzo o
parágrafo final, com que Giovanna encerrou seu brilhante ensaio:
“(...) Percebe-se,
portanto, que as palavras, na obra de Mestre Didi, soam como uma bela música
que ouvimos em momentos de angústia. São imprescindíveis, pois conduzem
harmonia e beleza rara aos ouvidos e às consciências. Formam imagens de tempos
infindos, mágicos e misteriosos, nos quais se construíam valores
verdadeiramente humanos. Propalar e resgatar as tradições da ancestralidade é
manifestar um profundo afeto às próprias raízes, mostrando às várias gerações o
patrimônio artístico e cultural que foi, durante séculos, comprimido a um plano
inferior. Didi, a meu ver, é mestre universal, por várias razões: sua obra
artística é esplêndida e, sobretudo, reflete a consciência límpida de uma
sociedade que também é afro-brasileira”. Precisa escrever mais?!!! Claro que
não!!!
No comments:
Post a Comment