Sunday, January 26, 2014

Ponte entre duas culturas

Pedro J. Bondaczuk

O “sacerdote-artista” Deoscoredes Maximiliano dos Santos – que além de líder religioso de culto nagô é, também, artista plástico e escultor – ou, Mestre Didi, como queiram e como é mais conhecido, é um escritor nitidamente de ficção. Talvez o leitor estranhe essa conceituação quando souber que quase metade de sua obra, ou seja, seis dos catorze livros que publicou, é de não-ficção. Ainda assim, tem que ser considerado como ficcionista, que “elegeu” o conto como o gênero em que se especializou. Os outros livros seus, em sua grande maioria, embora não ficcionais, têm alguma relação com as histórias que escreveu. Talvez as exceções sejam “Democracia e diversidade humana. Desafio contemporâneo” e “Pluralidade cultural e educação”.

As quatro outras publicações têm, de uma maneira ou de outra, algum tipo de relação com os contos que escreveu. Elas são, a saber: “Yorubá tal qual se fala” (1950), “Porque Oxalá usa ekodidé” (1966), “História da criação do mundo” (1988) e “Nossos ancestrais e o terreiro”. A leitura desses livros permite entendimento maior dos seus relatos ficcionais, porquanto os contextualiza. Para mim, Deoscoredes estabelece uma espécie de poonte entre duas ricas e relativamente ignoradas culturas: uma antiqüíssima, a africana e outra ainda em formação, a brasileira. Seu principal mérito é o fato de manter-se rigorosamente fiel à temática que elegeu, ou seja, a da cultura negra, dos dois lados do Atlântico, com seus mitos, lendas e pitorescas histórias que ele tão habilmente elaborou.

Se me pedissem para eleger apenas um único dos seus livros de contos, como sendo o melhor, eu não saberia qual escolher. Todos eles mantêm o mesmo padrão de qualidade, embora escritos com intervalos às vezes de dez, quinze e até de vinte anos um do outro. É uma uniformidade qualitativa rara em qualquer escritor, o que faz dele o que é: um dos melhores contistas da Bahia, Estado que produziu tantos e tão magníficos autores do gênero, e do País, que produziu e produz em muito maior quantidade.

Dois de seus livros foram publicados, em língua estrangeira, fora do Brasil: “Xangô, el guerrero conquistador y otros cuentos de Bahia” (que não tem versão em português e foi editado pelas Ediciones Silva Diaz, de Buenos Aires, em 1987) e “Contes noirs de Bahia” (com tradução francesa de Lyne Stone, lançado, em Paris, pela Editora Karthale, igualmente em 1987). Reportagens a seu respeito, enfatizando sua dedicação ao resgate da cultura negra no Brasil, foram publicadas em diversos jornais e revistas da Europa, da África e das Américas, nos países em que passou em viagens de estudo feitas na companhia da esposa, a renomada antropóloga Joana Elbein dos Santos.

Seus outros livros de contos publicados no Brasil são: “Contos negros da Bahia” (Edições GDR, 1961), “História de um terreiro nagô” (Editora Max Limonad, 1988), “Contos de nagô” (Edições GDR, 1963), “Contos crioulos da Bahia” (Editora Vozes, Petrópolis-RJ, 1976) e “Contos de Mestre Didi” (Editora Codecri, Rio de Janeiro, 1981).

Eu poderia escrever muito sobre o estilo peculiar de Deoscoredes Maximiliano dos Santos de narrar, de criar personagens, de urdir cenários e situações em suas histórias, mas não o farei. Para os que o conhecem, essas informações seriam redundantes e repetitivas. E, para os que não têm esse privilégio, recomendo que preencham essa lacuna lendo, eles mesmos, seus livros, que ganharão muito mais do que com enfadonhas teorizações. Mas, para não deixar estes últimos na mão, reproduzo alguns trechos do excelente trabalho de Giovanna Soalheiro Pinheiro, graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, no ensaio “Mestre Didi: entre o mito e a palavra falada”:

“ (,,,) Os contos são ora pedagógicos, ora satíricos, referindo-se, em seu sentido alegórico, aos costumes humanos. Na obra de Mestre Didi não é muito explícita a percepção diferencial entre mitos, lendas e fábulas, visto que há a confluência entre elementos históricos, sagrados e simbólicos. Pode-se afirmar apenas que alguns fatores de diferenciação, como por exemplo, o comparecimento de animais, determinam, em maior ou menor grau, tais classificações”. Dioscoredes, frequentemente, faz associações entre o folclore brasileiro e os mitos africanos, que ele próprio constrói. Exemplo disso é o que faz entre entes míticos como o nosso “Caipora” e Ossain, proveniente da África.

A esse propósito, Giovanna assinala, no seu citado ensaio: “A aproximação entre os dois seres lendários revela a riqueza e a universalidade dos mitos e lendas das várias tradições, sendo possível notar a presença desse sincretismo cultural em vários contos do autor aqui estudado”. E, para completar esse raciocínio, reproduzo o parágrafo final, com que Giovanna encerrou seu brilhante ensaio:

“(...) Percebe-se, portanto, que as palavras, na obra de Mestre Didi, soam como uma bela música que ouvimos em momentos de angústia. São imprescindíveis, pois conduzem harmonia e beleza rara aos ouvidos e às consciências. Formam imagens de tempos infindos, mágicos e misteriosos, nos quais se construíam valores verdadeiramente humanos. Propalar e resgatar as tradições da ancestralidade é manifestar um profundo afeto às próprias raízes, mostrando às várias gerações o patrimônio artístico e cultural que foi, durante séculos, comprimido a um plano inferior. Didi, a meu ver, é mestre universal, por várias razões: sua obra artística é esplêndida e, sobretudo, reflete a consciência límpida de uma sociedade que também é afro-brasileira”. Precisa escrever mais?!!! Claro que não!!!


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