Friday, January 31, 2014

Paixão pelo ser humano

Pedro J. Bondaczuk

A grande paixão da vida de Oswaldo Dias da Costa não foi, como se pode supor, a Literatura, embora seu talento literário fosse tamanho que ele é, sem dúvida alguma, escritor de presença obrigatória em qualquer antologia de ficção que se preze, pela qualidade, originalidade e criatividade dos seus contos. Ademais, é acatado, “quase” que consensualmente (raramente existe consenso no mundo literário), como um dos maiores ficcionistas que a Bahia e o País conheceram em todos os tempos. Não digo que não gostasse de escrever, pois fazer uma afirmação dessas seria até irresponsabilidade, se não grosseira heresia. Afirmo, no entanto, por todos os seus antecedentes, que não acreditava na Literatura como forma de lhe assegurar a imortalidade do nome. Aliás, nem era, sequer, algo que cogitasse.

A paixão que acompanhou Dias da Costa a vida toda era a utopia socialista, a da igualdade, fraternidade, solidariedade e justiça social, ideal que, na prática, nunca chegou a ser concretizado e do qual nenhum regime sequer se aproximou, mesmo que remotamente. Era, em última análise, o homem, sobretudo o simples e oprimido, privado de inalienáveis direitos. Antirreligioso, agnóstico e sumamente cético, “só tinha fé no povo e na Revolução, que o elevaria a patamares mais altos de vida e dignidade, nos ideais sagrados do Socialismo”, como acentua Gil Francisco, em cujo perfil biográfico que escreveu, a propósito desse escritor, colhi a maior parte das informações que fundamentam estes descompromissados comentários.

Coerente com seus ideais, Dias da Costa filiou-se, em 1935, ao Partido Comunista, do qual viria a se desligar vinte e cinco anos após, em 1960, naquele seu período de vida em que começou a se retrair, se afastar dos amigos e se isolar por completo, atitude que até hoje permanece incompreensível, porquanto, agindo como agiu, jogou pela janela todas as oportunidades de projeção, tanto literárias quanto sociais. Quando se filiou ao PC, essa ideologia empolgava a juventude idealista, e não somente brasileira, mas praticamente do mundo todo, que acreditou na utopia da plena justiça social. A guerra civil da Espanha estava em andamento e milhares de jovens comunistas alistaram-se, como voluntários, para combater o fascismo, representado pelo general espanhol Francisco Franco, que contava com o apoio logístico, material e principalmente militar dos ditadores Benito Mussolini e Adolf Hitler. O Brasil vivia, há já cinco anos, sob a ditadura de Getúlio Vargas, que “namorava”, ostensivamente, com o nazifascismo e movia, por conseqüência, implacável perseguição aos adeptos da esquerda.

Ressalte-se, porém, que apesar das suas convicções, Dias da Costa jamais fez do talento literário instrumento de propaganda da ideologia que o fascinava e mobilizava. Separou uma coisa da outra e essa separação foi mais um dos fatores que lhe emprestaram a credibilidade de que goza até hoje. É claro que, de uma forma ou de outra, suas idéias igualitárias influenciaram os enredos que criou e, sobretudo, os personagens que brotaram de sua inspiração. Gil Francisco observa a respeito: “Sua obra, de um modo geral, parece ter sido fecundada por um sentimento de solidariedade do homem como partícula social, sem que esse sentimento, entretanto, se apouque a reduzir-se a manifesto político”.

E prossegue, mais adiante: “O tom humano de sua criação a torna atemporal, ainda que tendo como cenário a Bahia, o que não o impede que sejam realizações duradouras, marca inconfundível de um grande escritor”. Todavia, há que se ressaltar seu talento descritivo, seu estilo limpo, direto e claro, que lembra mais um inspirado poema em prosa que propriamente a narrativa nua e crua das maldades e contradições humanas que caracterizam quase todas as obras de ficção. Isso fica claro, por exemplo, na forma com que encerrou o conto “Um simples farol no mar”, publicado em “Histórias da Bahia” (Edições GDR, 1963), antologia que tomei por referência para esta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos. Confiram:

“(...) As estrelas estavam brilhando, o mar estava sossegado, as vagas se espraiavam, mansas, na praia sem ruídos. Dentro de casa Mariana estava dormindo, talvez sonhando. Agora não havia grilos cantando, nem o coaxar dos sapos rasgava a noite da lagoa no fundo. Os coqueiros estavam aprumados e tranqüilos, com as palmas rendilhadas decorando a noite quieta. A paz era absoluta sob as estrelas. Mas essa paz não era possível para eles. E isso lhe dizia o farol, lá de longe, do outro lado da baía, enviando a mensagem de seu clarão vermelho que deslizava de leve pela superfície das águas paradas.

Leonardo estava lá embaixo, o saveiro pronto, o cachimbo brilhando na escuridão da noite agora sem mistérios.

Carlos olhou as estrelas, olhou o mar imóvel, olhou o colar de luzes da cidade defronte, abarcou, num último olhar, o pequeno mundo, que procurava prendê-lo. Então, decidido de uma vez, esperou que o falor brilhasse de novo e novamente se apagasse.; Depois, abaixou-se devagar, enfiou a carta para Mariana por baixo da porta, ergueu-se num repelão e estirou os braços longos para distender os músculos entorpecidos. Só então, sem olhar para trás nem uma vez, marchou em passos medidos pela praia, procurando o saveiro pequeno de Leonardo, enquanto no céu as estrelas continuavam cintilando infatigavelmente”.

Como se vê, é linguagem de “poeta”, que de certa forma Dias da Costa foi, no sentido original da palavra “poesia”, em sua raiz grega, usada para descrever “ação”. O que a meu ver é mais relevante na vida desse escritor é o fato dele ter “vivido” o que sempre acreditou, ao contrário de muitos e muitos pseudo-idealistas, cujo ideal é somente de fachada, do tipo “faça o que falo, mas não o que faço” e que em última análise é mero “devaneio de solteirona” ou seu equivalente. Mesmo pagando preço muito alto, proibitivo, por sua desconfiança no próprio talento, jogando, literalmente, o sucesso “pela janela”, admiro e respeito a coerência de Dias Costa que, a despeito de tudo, e à sua revelia, é, e sempre será, “imortal”, modelo a ser seguido por escritores das gerações futuras quando o assunto for ficção.


Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

No comments: