Perpetuador da tradição
oral
Pedro
J. Bondaczuk
O conto, de Deoscoredes
Maximiliano dos Santos, selecionado para integrar a antologia “Histórias da
Bahia” (Edições GDR, 1963), obra que tomei por base para esta série de estudos
a propósito de 23 dos principais ficcionistas baianos, é intitulado “O garoto e
o cachorro encantado”. É um texto característico da forma desse escritor narrar
suas histórias. Ou seja, reúne elementos do folclore brasileiro e mitos e
lendas trazidos da África para o Brasil pelos escravos. É, pois,
simultaneamente, obra ficcional, de criação, e resgate da memória africana, que
se incorporou à nossa cultura e a
enriqueceu, sem dúvida.
Para que o leitor tenha
pelo menos pálida idéia da maneira de Deoscoredes fazer suas narrativas,
reproduzo o trecho inicial do citado texto, extraído de seu livro “Contos negros
da Bahia”:
“Conheci
uma senhora que tinha um filho que fazia parte da seita de Eguns.
Este
rapaz, embora muito novo, contava apenas doze anos de idade, já era grande na
seita, porém, não ligava muita importância às suas obrigações para com ela.
Certa
vez, teve uma festa no terreiro dos Eguns e ele estava lá juntamente com sua
progenitora.
Devido
ao lugar ser muito pobre e não encontrarem nada para comer, pois já tinham
acabado os mantimentos que levaram, sua progenitora tendo uma quitanda em um
lugar retirado de onde estavam e precisando de coisas não só da quitanda, como
dos armazéns que por lá existiam, resolveu mandar o garoto fazer as compras e
apanhar outras coisas para o seu uso, na referida quitanda.
No
dia seguinte, pela manhã, o garoto, bem recomendado por sua progenitora, saiu
para ir buscar os mantimentos necessários.
O
lugar era bem distante, durante o dia um pouco transitado devido a ser beira da
costa de uma ilha, mas à noite muito deserto.
Mesmo
assim o garoto não se acovardou, muniu-se de um calção e brincando pela vasa da
maré com outros garotos seus amigos, chegou ao referido lugar onde tinha que
fazer a feira.
Daí
cada um tomou o seu rumo.
O
garoto filho da dita senhora foi logo ao armazém, fez todas as compras, que
levou para a quitanda, juntando com o resto das coisas que faltavam e deixando
tudo arrumado para a hora em que se decidisse a fazer a viagem de volta, pois
já tinha pensado em ir visitar antes a pequena de que gostava (...)”.
E a narrativa segue
neste diapasão, com o contista criando o clima de suspense, desfeito, apenas,
no parágrafo final. Com isso, retém a atenção do leitor até a última palavra,
até o ponto final, misturando, ao longo da narrativa, elementos naturais e
sobrenaturais, conferindo, a estes últimos, verossimilhança, por mais
inverossímeis que possam parecer.
Para que vocês tenham
uma idéia mais precisa, reproduzo outro excerto de produção de Deoscoredes
Maximiliano dos Santos, este extraído do seu livro “Contos de Mestre Didi”
(Editora Codecri, Rio de Janeiro, 1981):
“
(...) Havia na Bahia, em uma certa época, um casal que tinha três filhos.
Um
deles chamava-se Ossain. Desde pequeno era devotado às matas e só vivia dentro
delas; era muito querido por todos que o conheciam.
Com
a idade de dez anos já era médico de todos os moradores da cidade e de toda a
redondeza onde ele morava com sua mãezinha e seus irmãos, faltando o pai, que
ele não tinha conhecido.
A
sua mãe lhe gostava um pouco, porém simpatizava mais com os outros irmãos, que
também lhe invejavam muito e não lhe tinham muita simpatia.
Ossain
reconhecia tudo o que faziam com ele em casa, porém não ligava, pois tudo o que
faltava a ele em casa encontrava no mato, na rua, a chamado de alguma família,
finalmente em qualquer que fosse o lugar que ele estivesse.
Os
anos passaram. Sua mãe já estava bem velhinha e seus irmãos também já estavam
com a idade bem avançada; só Ossain contava com dezoito anos de idade.
Um
dia, sem ninguém esperar, Ossain pegou um apo oké (saco grande), juntou todos
os seus adôs kekerê (cabaças pequenas) com seus ixés (trabalhos), suas roupas e
todos os seus demais ingredientes; depois de tudo arrumadinho, despediu-se de
sua mãe, seus irmãos e todos, saindo pelo mundo afora (...)!
O conto retrata o
universo mágico do mundo dos orixás e de suas representações nas religiões de
origem africana. Deoscoredes esbanja palavras do idioma yoruba, mas reproduz
seu significado em português, o que permite ao leitor não afeito a essa cultura
conhecer uma nova linguagem, provavelmente muito mais antiga do que a nossa,
preservada, quase que por milagre, por cada vez mais raros afrodescendentes
conhecedores de suas ancestrais
tradições e da língua em que são expressadas, ameaçada de desaparecer como
conseqüência da dita “modernidade”.
O potiguar Luís da
Câmara Cascudo, sem dúvida o maior folclorista brasileiro de todos os tempos,
em seu livro “Literatura oral no Brasil”, faz a seguinte constatação sobre as
narrativas orais dos povos africanos (que Mestre Didi perpetua em textos): “Toda África ainda mantém seus escritores
verbais, oradores das crônicas antigas, cantores das glórias guerreiras e
sociais, antigas e modernas, proclamadores das genealogias ilustres. São os
akpalô kpatita, ologbo, griotes. Constituem castas, com regras, direitos
deveres, interditos, privilégios. De geração em geração, mudando de lábios,
persiste a voz evocadora, ressuscitando o que não deve morrer no esquecimento
(...)”
Encerro esta série de
considerações sobre Deoscoredes Maximiliano dos Santos reproduzindo estas
oportunas observações de Giovanna Soalheiro Pinheiro, graduada em Letras pela
Universidade Federal de Minas Gerais, em seu precioso ensaio “Mestre Didi:
entre o mito e a palavra falada”: “(...)
Mestre Didi enquadra-se com maestria no modelo de narrador acima ilustrado por
Cascudo, já que representa, ao mesmo tempo, a voz ancestral africana e as
tradições afro-brasileiras, especialmente da Bahia. Os contos, além de pintarem
o nascimento dos orixás e suas funções, falam sobre os acontecimentos humanos,
sobre a moral e os princípios éticos que governam as comunidades”. Por
isso, esse escritor é considerado, com toda a justiça, um dos mestres da
ficção, no caso do conto, e não somente da Bahia, mas de todo o Brasil.
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