Monday, January 20, 2014

Sobretudo um sábio

Pedro J. Bondaczuk

A caracterização profissional de determinados intelectuais – e não apenas deles, mas de qualquer pessoa, não importa em que atividade se destaque – é sempre parcial e muitas vezes injusta. Nomear, por exemplo, determinado indivíduo como “jornalista” é dar a entender que o jornalismo é a única coisa que ele sabe fazer ou que fez. Nem sempre (ou quase nunca) isso é verdade. E aqui não vai nenhum demérito a essa profissão (à qual tenho orgulho de me dedicar) e nem aos que a exercem, claro. Só quero demonstrar como essa caracterização “limita” a imagem que possamos fazer de alguém.

É possível, nesse caso, que essa pessoa seja, também, escritora. Ou, para fugir de atividades correlatas, paralelas, talvez se trate de compositora (ou pintora, ou escultora, não importa) e que em alguma dessas artes se mostre até mesmo mais talentosa e perita do que no jornalismo. Todavia, para os que não a conheçam, será sempre (e somente) “jornalista”. Esse preâmbulo, um tanto extenso, destina-se a tratar de algumas atividades exercidas por David Salles. Na área de letras, fez um pouco de tudo (na verdade, fez muito de tantas coisas), e sempre bem. Caracterizá-lo, pois, apenas como jornalista (que de fato foi), seria esquecer o ótimo escritor que foi. Nomeá-lo, porém, apenas como tal, seria não levar em conta sua atuação de crítico literário. E vai por aí afora.

Rótulos a parte, pois são os que menos interessam, é mister que se reconheça que ele foi um dos mais completos, refinados e brilhantes ficcionistas, não somente baianos (objetos desta série de estudos), mas brasileiros. Claro que não se pode, e não se deve, deixar de mencionar sua atuação jornalística, das mais dedicadas e constantes, e muito menos sua importância na crítica literária. Encaro David Salles, porém, – sem diminuir em nada sua ação em outras tantas atividades, mas, pelo contrário, reconhecendo-a e exaltando-a – como “operário das letras”, às quais se dedicou com autodisciplina e afinco, mesmo no auge da doença que findaria por matá-lo tão prematuramente, aos 48 anos de idade.

Tratou-se, antes de tudo, de um espírito eclético, dotado de uma curiosidade sem limites. Em termos acadêmicos, por exemplo, formou-se, inicialmente, em Direito, tendo recebido seu diploma em 1962. Nesta época, já tinha enorme quantidade de textos publicada em jornais, entre os quais, vários contos. Até foi incluído em um livro desse gênero,. “Reunião”, junto com João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho e Noênio Spínola. Intuiu, portanto, que sua grande vocação era a Literatura e que precisava estar preparado para ela, inclusive com fundamentos teóricos. Disciplinado e determinado, como era, resolveu voltar aos bancos escolares, desta vez, para cursar Letras, graduando-se com louvor nesse curso.

Aliás, se tem algo que David Salles nunca deixou de fazer, foi estudar. Estudou, e muito, já que sua curiosidade era insaciável, característica dos intelectuais que realmente fazem jus a essa designação e, sobretudo, dos sábios. Todavia, ao contrário de muita gente, que estuda, apenas, pelo prazer de conhecer (o que não deixa de ser louvável), juntou a ele a prática, a ação, a produção. Escreveu, escreveu e escreveu, muito, e principalmente, bem.  Afinal, o permanente exercício tende a melhorar, a burilar e a aperfeiçoar o talento natural, seja ele qual for.

É interessante o depoimento dado pelo seu irmão mais jovem, Sigismundo Salles, a respeito do “escritor da família”, em entrevista concedida em 24 de novembro de 1997, que facilita o entendimento do leigo a propósito da sua personalidade, do seu caráter. Disse, entre outras coisas:

“ (...) Tinha uma angústia de não estar satisfeito com a mentalidade da época. Envolveu-se primeiro com o Direito, depois com Jornalismo, para depois de chegar aonde verdadeiramente queria: Letras. Sempre estudou por decisão própria, por sentir a necessidade de estar sempre a par da vida literária. Não era vaidoso nem queria ser estrela, queria apenas que as suas idéias vingassem, tomassem forma. Sempre mais arredio, David nunca esteve muito próximo da família. Destacava-se pelo seu gosto artístico e intelectual, o que o fazia diferente dos outros irmãos, que provavelmente na época não o compreendiam (...)”

Finalmente, Sigismundo conclui assim essa descrição do irmão ilustre: “(...) Pelo seu perfil extremamente crítico, David não deixava nunca de lado as suas opiniões e pensamentos, mesmo no meio familiar, o que muitas vezes criava um certo desconforto naqueles que o cercavam. Talvez por ser o filho mais velho, gozava de certas regalias e preferências em casa”. Aqui, permito-me a um reparo: Isso se dava (no caso, as tais “regalias”), na minha modesta opinião, não propriamente por sua primogenitura, mas pelo fato da mãe, Afra Salles, ser, como ele, “operária das letras”. Afinal, tratava-se de uma relativamente bem-sucedida romancista. E escritor geralmente entende escritor, mesmo que não demonstre.

Reitero, até por questão de justiça, que a maior parte das informações a respeito de David Salles, neste meu tacanho e confuso estudo, foi extraída da excelente tese de doutorado em Linguística na Universidade Federal da Bahia de Itana Nogueira Nunes. E mesmo alguns detalhes obtidos em outras fontes tiveram sua participação. Seu primoroso e detalhado trabalho acadêmico forneceu-me pistas sobre onde procurar. Apesar da minha ojeriza por rótulos, fico na dúvida se devo caracterizá-lo “só” como jornalista, ou poeta, ou crítico literário ou mesmo escritor. Seja qual for a caracterização utilizada, porém, a conclusão a que chego é a de que David Salles foi um dos grandes ficcionistas brasileiros, e não somente da Bahia e nem do século XX, mas da Literatura. e de todos os tempos. Não merece ser esquecido. E, no que depender de mim, não o será.


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