Sobretudo um sábio
Pedro
J. Bondaczuk
A caracterização
profissional de determinados intelectuais – e não apenas deles, mas de qualquer
pessoa, não importa em que atividade se destaque – é sempre parcial e muitas
vezes injusta. Nomear, por exemplo, determinado indivíduo como “jornalista” é
dar a entender que o jornalismo é a única coisa que ele sabe fazer ou que fez.
Nem sempre (ou quase nunca) isso é verdade. E aqui não vai nenhum demérito a
essa profissão (à qual tenho orgulho de me dedicar) e nem aos que a exercem,
claro. Só quero demonstrar como essa caracterização “limita” a imagem que
possamos fazer de alguém.
É possível, nesse caso,
que essa pessoa seja, também, escritora. Ou, para fugir de atividades
correlatas, paralelas, talvez se trate de compositora (ou pintora, ou
escultora, não importa) e que em alguma dessas artes se mostre até mesmo mais
talentosa e perita do que no jornalismo. Todavia, para os que não a conheçam,
será sempre (e somente) “jornalista”. Esse preâmbulo, um tanto extenso,
destina-se a tratar de algumas atividades exercidas por David Salles. Na área
de letras, fez um pouco de tudo (na verdade, fez muito de tantas coisas), e
sempre bem. Caracterizá-lo, pois, apenas como jornalista (que de fato foi),
seria esquecer o ótimo escritor que foi. Nomeá-lo, porém, apenas como tal,
seria não levar em conta sua atuação de crítico literário. E vai por aí afora.
Rótulos a parte, pois
são os que menos interessam, é mister que se reconheça que ele foi um dos mais
completos, refinados e brilhantes ficcionistas, não somente baianos (objetos
desta série de estudos), mas brasileiros. Claro que não se pode, e não se deve,
deixar de mencionar sua atuação jornalística, das mais dedicadas e constantes,
e muito menos sua importância na crítica literária. Encaro David Salles, porém,
– sem diminuir em nada sua ação em outras tantas atividades, mas, pelo
contrário, reconhecendo-a e exaltando-a – como “operário das letras”, às quais
se dedicou com autodisciplina e afinco, mesmo no auge da doença que findaria
por matá-lo tão prematuramente, aos 48 anos de idade.
Tratou-se, antes de
tudo, de um espírito eclético, dotado de uma curiosidade sem limites. Em termos
acadêmicos, por exemplo, formou-se, inicialmente, em Direito, tendo recebido
seu diploma em 1962. Nesta época, já tinha enorme quantidade de textos
publicada em jornais, entre os quais, vários contos. Até foi incluído em um
livro desse gênero,. “Reunião”, junto com João Ubaldo Ribeiro, Sônia Coutinho e
Noênio Spínola. Intuiu, portanto, que sua grande vocação era a Literatura e que
precisava estar preparado para ela, inclusive com fundamentos teóricos.
Disciplinado e determinado, como era, resolveu voltar aos bancos escolares,
desta vez, para cursar Letras, graduando-se com louvor nesse curso.
Aliás, se tem algo que
David Salles nunca deixou de fazer, foi estudar. Estudou, e muito, já que sua
curiosidade era insaciável, característica dos intelectuais que realmente fazem
jus a essa designação e, sobretudo, dos sábios. Todavia, ao contrário de muita
gente, que estuda, apenas, pelo prazer de conhecer (o que não deixa de ser
louvável), juntou a ele a prática, a ação, a produção. Escreveu, escreveu e
escreveu, muito, e principalmente, bem.
Afinal, o permanente exercício tende a melhorar, a burilar e a
aperfeiçoar o talento natural, seja ele qual for.
É interessante o
depoimento dado pelo seu irmão mais jovem, Sigismundo Salles, a respeito do
“escritor da família”, em entrevista concedida em 24 de novembro de 1997, que
facilita o entendimento do leigo a propósito da sua personalidade, do seu
caráter. Disse, entre outras coisas:
“ (...) Tinha uma
angústia de não estar satisfeito com a mentalidade da época. Envolveu-se
primeiro com o Direito, depois com Jornalismo, para depois de chegar aonde
verdadeiramente queria: Letras. Sempre estudou por decisão própria, por sentir
a necessidade de estar sempre a par da vida literária. Não era vaidoso nem
queria ser estrela, queria apenas que as suas idéias vingassem, tomassem forma.
Sempre mais arredio, David nunca esteve muito próximo da família. Destacava-se
pelo seu gosto artístico e intelectual, o que o fazia diferente dos outros
irmãos, que provavelmente na época não o compreendiam (...)”
Finalmente, Sigismundo
conclui assim essa descrição do irmão ilustre: “(...) Pelo seu perfil
extremamente crítico, David não deixava nunca de lado as suas opiniões e
pensamentos, mesmo no meio familiar, o que muitas vezes criava um certo
desconforto naqueles que o cercavam. Talvez por ser o filho mais velho, gozava
de certas regalias e preferências em casa”. Aqui, permito-me a um reparo: Isso
se dava (no caso, as tais “regalias”), na minha modesta opinião, não
propriamente por sua primogenitura, mas pelo fato da mãe, Afra Salles, ser,
como ele, “operária das letras”. Afinal, tratava-se de uma relativamente
bem-sucedida romancista. E escritor geralmente entende escritor, mesmo que não
demonstre.
Reitero, até por
questão de justiça, que a maior parte das informações a respeito de David
Salles, neste meu tacanho e confuso estudo, foi extraída da excelente tese de
doutorado em Linguística na Universidade Federal da Bahia de Itana Nogueira
Nunes. E mesmo alguns detalhes obtidos em outras fontes tiveram sua
participação. Seu primoroso e detalhado trabalho acadêmico forneceu-me pistas
sobre onde procurar. Apesar da minha ojeriza por rótulos, fico na dúvida se
devo caracterizá-lo “só” como jornalista, ou poeta, ou crítico literário ou
mesmo escritor. Seja qual for a caracterização utilizada, porém, a conclusão a
que chego é a de que David Salles foi um dos grandes ficcionistas brasileiros,
e não somente da Bahia e nem do século XX, mas da Literatura. e de todos os
tempos. Não merece ser esquecido. E, no que depender de mim, não o será.
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