Paixão pelo ser humano
Pedro
J. Bondaczuk
A grande paixão da vida
de Oswaldo Dias da Costa não foi, como se pode supor, a Literatura, embora seu
talento literário fosse tamanho que ele é, sem dúvida alguma, escritor de
presença obrigatória em qualquer antologia de ficção que se preze, pela
qualidade, originalidade e criatividade dos seus contos. Ademais, é acatado,
“quase” que consensualmente (raramente existe consenso no mundo literário),
como um dos maiores ficcionistas que a Bahia e o País conheceram em todos os
tempos. Não digo que não gostasse de escrever, pois fazer uma afirmação dessas
seria até irresponsabilidade, se não grosseira heresia. Afirmo, no entanto, por
todos os seus antecedentes, que não acreditava na Literatura como forma de lhe
assegurar a imortalidade do nome. Aliás, nem era, sequer, algo que cogitasse.
A paixão que acompanhou
Dias da Costa a vida toda era a utopia socialista, a da igualdade,
fraternidade, solidariedade e justiça social, ideal que, na prática, nunca
chegou a ser concretizado e do qual nenhum regime sequer se aproximou, mesmo
que remotamente. Era, em última análise, o homem, sobretudo o simples e
oprimido, privado de inalienáveis direitos. Antirreligioso, agnóstico e
sumamente cético, “só tinha fé no povo e
na Revolução, que o elevaria a patamares mais altos de vida e dignidade, nos
ideais sagrados do Socialismo”, como acentua Gil Francisco, em cujo perfil
biográfico que escreveu, a propósito desse escritor, colhi a maior parte das
informações que fundamentam estes descompromissados comentários.
Coerente com seus
ideais, Dias da Costa filiou-se, em 1935, ao Partido Comunista, do qual viria a
se desligar vinte e cinco anos após, em 1960, naquele seu período de vida em
que começou a se retrair, se afastar dos amigos e se isolar por completo,
atitude que até hoje permanece incompreensível, porquanto, agindo como agiu,
jogou pela janela todas as oportunidades de projeção, tanto literárias quanto
sociais. Quando se filiou ao PC, essa ideologia empolgava a juventude idealista,
e não somente brasileira, mas praticamente do mundo todo, que acreditou na
utopia da plena justiça social. A guerra civil da Espanha estava em andamento e
milhares de jovens comunistas alistaram-se, como voluntários, para combater o
fascismo, representado pelo general espanhol Francisco Franco, que contava com
o apoio logístico, material e principalmente militar dos ditadores Benito
Mussolini e Adolf Hitler. O Brasil vivia, há já cinco anos, sob a ditadura de
Getúlio Vargas, que “namorava”, ostensivamente, com o nazifascismo e movia, por
conseqüência, implacável perseguição aos adeptos da esquerda.
Ressalte-se, porém, que
apesar das suas convicções, Dias da Costa jamais fez do talento literário
instrumento de propaganda da ideologia que o fascinava e mobilizava. Separou
uma coisa da outra e essa separação foi mais um dos fatores que lhe emprestaram
a credibilidade de que goza até hoje. É claro que, de uma forma ou de outra,
suas idéias igualitárias influenciaram os enredos que criou e, sobretudo, os
personagens que brotaram de sua inspiração. Gil Francisco observa a respeito: “Sua obra, de um modo geral, parece ter sido
fecundada por um sentimento de solidariedade do homem como partícula social,
sem que esse sentimento, entretanto, se apouque a reduzir-se a manifesto
político”.
E prossegue, mais
adiante: “O tom humano de sua criação a
torna atemporal, ainda que tendo como cenário a Bahia, o que não o impede que
sejam realizações duradouras, marca inconfundível de um grande escritor”.
Todavia, há que se ressaltar seu talento descritivo, seu estilo limpo, direto e
claro, que lembra mais um inspirado poema em prosa que propriamente a narrativa
nua e crua das maldades e contradições humanas que caracterizam quase todas as
obras de ficção. Isso fica claro, por exemplo, na forma com que encerrou o
conto “Um simples farol no mar”, publicado em “Histórias da Bahia” (Edições
GDR, 1963), antologia que tomei por referência para esta série de estudos sobre
alguns dos principais ficcionistas baianos. Confiram:
“(...)
As estrelas estavam brilhando, o mar estava sossegado, as vagas se espraiavam,
mansas, na praia sem ruídos. Dentro de casa Mariana estava dormindo, talvez
sonhando. Agora não havia grilos cantando, nem o coaxar dos sapos rasgava a
noite da lagoa no fundo. Os coqueiros estavam aprumados e tranqüilos, com as
palmas rendilhadas decorando a noite quieta. A paz era absoluta sob as
estrelas. Mas essa paz não era possível para eles. E isso lhe dizia o farol, lá
de longe, do outro lado da baía, enviando a mensagem de seu clarão vermelho que
deslizava de leve pela superfície das águas paradas.
Leonardo
estava lá embaixo, o saveiro pronto, o cachimbo brilhando na escuridão da noite
agora sem mistérios.
Carlos
olhou as estrelas, olhou o mar imóvel, olhou o colar de luzes da cidade
defronte, abarcou, num último olhar, o pequeno mundo, que procurava prendê-lo.
Então, decidido de uma vez, esperou que o falor brilhasse de novo e novamente
se apagasse.; Depois, abaixou-se devagar, enfiou a carta para Mariana por baixo
da porta, ergueu-se num repelão e estirou os braços longos para distender os
músculos entorpecidos. Só então, sem olhar para trás nem uma vez, marchou em
passos medidos pela praia, procurando o saveiro pequeno de Leonardo, enquanto
no céu as estrelas continuavam cintilando infatigavelmente”.
Como se vê, é linguagem
de “poeta”, que de certa forma Dias da Costa foi, no sentido original da
palavra “poesia”, em sua raiz grega, usada para descrever “ação”. O que a meu
ver é mais relevante na vida desse escritor é o fato dele ter “vivido” o que
sempre acreditou, ao contrário de muitos e muitos pseudo-idealistas, cujo ideal
é somente de fachada, do tipo “faça o que falo, mas não o que faço” e que em
última análise é mero “devaneio de solteirona” ou seu equivalente. Mesmo
pagando preço muito alto, proibitivo, por sua desconfiança no próprio talento,
jogando, literalmente, o sucesso “pela janela”, admiro e respeito a coerência
de Dias Costa que, a despeito de tudo, e à sua revelia, é, e sempre será,
“imortal”, modelo a ser seguido por escritores das gerações futuras quando o
assunto for ficção.
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