Thursday, April 05, 2018

DIRETO DO ARQUIVO - Desequilíbrio e despreparo


Desequilíbrio e despreparo


Pedro J. Bondaczuk


O dramático caso do seqüestro dos passageiros de um ônibus da linha 174, que fazia o trajeto do Centro ao Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, ocorrido no dia 12 passado, com um desfecho dos mais infelizes, permite que se tire uma série de conclusões sobre o lamentável estado de insegurança que vive a população, não apenas carioca, mas de todas as grandes cidades do País. Em primeiro lugar, o caso mostrou que há total despreparo, por parte da Polícia Militar (pelo menos daquele Estado), para fazer face a situações de emergência, como aquela.

A operação de resgate teria sido cômica, não fosse trágica e não redundasse na estúpida morte de uma pessoa inocente, vítima de uma circunstância que poderia ser, senão evitada, pelo menos manejada com maior competência, no caso a jovem Geisa Firmo Gonçalves, grávida de dois meses. Perderam-se, portanto, duas preciosas vidas, que poderiam, e deveriam, ser salvas pelos supostos agentes da lei e da ordem.

O segundo ponto a observar, é o desequilíbrio dos policiais que participaram dessa ação, acompanhada pela televisão pelo País inteiro. E em duas situações. A primeira foi a desastrada intervenção do PM, quando o sequestrador, Sandro do Nascimento, de 22 anos, conhecido pelo apelido de "Mancha", desceu do ônibus trazendo sua refém como escudo humano.

Com um pouco mais de conversa, é até possível (senão provável) que os agentes conseguissem a sua rendição, sem que ninguém saísse ferido. Contudo, sem saber por ordem de quem, o referido "atirador de elite", que não conseguiu atingir o seu alvo nem a menos de dez centímetros de distância, saiu da frente do veículo, onde havia permanecido escondido por horas, na tentativa de alvejar o marginal com um tiro de surpresa e atacou de repente. Errou o bote. Pior, acertou de raspão quem pretensamente pretendia salvar. E, para complicar tudo de vez, permitiu que o sequestrador fizesse os disparos mortais, que roubaram a vida de Geisa e de seu bebê.

A segunda ação desequilibrada, esta muitíssimo mais grave, foi a dos PMs que deveriam conduzir Sandro preso a alguma delegacia. Ao entrar na viatura, as imagens de TV mostraram que o marginal não tinha qualquer ferimento a bala. No entanto, chegou morto ao hospital. E a autópsia revelou que a causa da sua morte foi estrangulamento. Ou seja, ocorreu um brutal e injustificado homicídio, no interior do carro da polícia, o que causou pasmo e até mesmo revolta nos que ainda acreditam um pouquinho que seja em justiça.

Não se trata, como alguns ignorantes podem interpretar, de tomar partido do sequestrador, tratando-o como se fosse um "coitadinho" (embora o seja). Se ele cometeu um crime hediondo, sequestrando os passageiros do ônibus, tomando uma mulher indefesa ---, batalhadora, estimada e respeitada em sua comunidade, pois era professora de artesanato em uma escola comunitária da Favela da Rocinha --- e suprimindo a sua vida, pior foi a ação de quem o matou. Quem o estrangulou usava farda! Agia, por consequência, em nome da justiça! Tornou-se, pois, um frio e estúpido homicida, sem nenhuma atenuante ou justificativa, manchando as tradições da gloriosa corporação que jurou defender.

Pesquisa do DataFolha revelou que 41% dos paulistanos consultados aprovaram a forma como Sandro foi morto, o que é preocupante. Mas não se pode levar esses números muito a sério. Muitos dos que aprovaram esse estúpido e covarde homicídio, senão a maioria, agiram impulsivamente, no calor dos acontecimentos. Felizmente, a reprovação atingiu 54%, o que mostra que ainda não se perderam, por completo, os rumos neste País.

Frise-se que o "Mancha" era ex-menino de rua. Em 1993, escapou da célebre "Chacina da Candelária", quando oito menores que dormiam naquela praça do centro do Rio foram executados por PMs. Nos sete anos que se passaram, depois desse vergonhoso fato, que chocou o mundo, sua vida mudou apenas para pior. Ninguém o socorreu, o instruiu ou o orientou. O menino cresceu. Do vício de cheirar cola, passou a usar drogas mais pesadas: maconha, crack, cocaína ou sabe-se lá mais o quê. Sem profissão, e sem dinheiro, portanto, para comprar os entorpecentes que lhe satisfizessem o vício, começou a praticar assaltos. Primeiro, pequenos furtos. Depois... Dá para imaginar sua escalada. E teve o fim o mais previsível possível.

Aliás, desde a chacina de 1993, 43 meninos e meninas, dos 72 que viviam na Candelária, já foram assassinados, conforme informou a Organização Não Governamental "Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes", em matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo, no dia 18 passado. Pior, dos sobreviventes, só dois têm ocupação. E não se trata de nenhuma profissão especial. Um, trabalha como "auxiliar de serviços gerais", eufemismo de "biscateiro", e não deve receber mais do que um mísero salário mínimo por mês. O outro, é pagodeiro... Portanto, por omissão das autoridades, e da própria sociedade, que tanto clama por segurança, dezenas de potenciais novos "Sandros" estão sendo engendrados neste instante nas ruas do Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas, Porto Alegre, Belo Horizonte, etc., sem que nada se faça para deter essa "fábrica de monstros". E a qualquer momento, num ônibus, no trânsito, em alguma casa comercial, na residência de alguém ou em algum cinema, podem "explodir", como bombas humanas, fazendo sabe-se Deus quantas vítimas. Essa é a maior lição (e que sirva de alerta para todos) que o incidente do Jardim Botânico deixa para todos nós.

(Editorial da Folha do Taquaral de 30 de junho de 2000).


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