Ideias
utópicas
Pedro
J. Bondaczuk
As várias formas de organização comunitária, desde tempos
remotíssimos, quando os homens ainda viviam em cavernas e davam os
primeiros passos rumo ao que se convencionou chamar de “civilização”,
jamais foram, obviamente, satisfatórias para todos.
Caracterizaram-se, invariavelmente, pela prevalência do mais forte,
do mais “esperto” e do mais ágil, em detrimento da maioria, que
não contava com essas características. A História dos povos – é
fácil de se comprovar, à mais ligeira análise –, não passa de
mera sucessão de violências, de injustiças, de crueldades de toda
a sorte, de patifarias e de corrupção, com raros lampejos de
grandeza, de transcendência, de lucidez e de solidariedade.
Esse estado de coisas perpetuou-se e desembocou no mundo atual, com
seu desfile cotidiano de horrores, a que temos acesso, diariamente,
através dos meios de comunicação (quando não somos as vítimas
indefesas desses comportamentos agressivos, injustos e excludentes).
Por isso, as pessoas idealistas e bem informadas, que cultivam
valores – aqueles testados e comprovados pelo tempo, que asseguram
um mínimo de civilização às mais diversas comunidades –, não
se conformam com o que veem, leem, ouvem e testemunham ao seu redor,
quando não sentem tudo isso na própria carne. E nem poderiam se
conformar. A vida não é, e não pode ser, apenas isso que se vê!
Estes inconformados sonham, isto sim, com sociedades ideais, em que
imperem a ordem – que seja natural e consensual e nunca imposta à
força – a solidariedade, a beleza, a alegria e a proteção dos
mais fracos. Ou seja, que idealizam um inefável e perpétuo império
da justiça e do bem, que nunca existiu em nenhum tempo e lugar.
São ideais utópicos, sem dúvida, a maioria restrita ao campo da
mera fantasia. Algumas idéias nesse sentido, todavia, são
perfeitamente viáveis e factíveis. Desde que, claro, sejam bem
divulgadas e defendidas com sabedoria, pertinácia e lucidez por
líderes esclarecidos, preparados e comunicativos, que contem com
raro poder de convencimento para dobrar até o mais empedernido dos
céticos.
Ao contrário do que se pensa, eles existem, e até em número
considerável, posto que estejam se omitindo, por várias razões, do
seu papel de condutores de povos. São estas idéias que me proponho
a analisar, a priori, antes de abordar as utopias mais populares e
conhecidas, que atravessaram décadas, séculos, milênios até e
chegaram até nós, não raro de forma truncada e/ou distorcida. Via
de regra, rimos delas, e as tratamos como coisas “exóticas”,
criadas por excêntricos. por malucos ou por desocupados.
Evidentemente, não são.
Utilizarei, como fio condutor dessas considerações, o esclarecedor
ensaio do professor Luiz Gonzaga Teixeira, divulgado na internet,
intitulado “Utopia, uma cartilha”. O autor, filósofo e
sociólogo, é um utopista convicto, que não se limita a teorizar
sobre o assunto, mas promove a organização de várias comunidades
alternativas. Dedica-se há muitos anos a esse ideal de mudança
(para melhor) da sociedade, escrevendo inúmeros textos a respeito e
publicando vários livros (entre os quais, “Utopia e Marx”).
Procura, sobretudo, construir a teoria da utopia com base em
contribuições de clássicos como Pierre Joseph Proudhon e Martin
Buber, entre outros.
O professor Luiz Gonzaga Teixeira nos ensina que “algumas pessoas
vivem totalmente mergulhadas na sua vida, preocupadas com coisas
criadas pelo seu sistema para volvê-las, alegrá-las, angustiá-las.
Chamamos essas pessoas de tópicas, isto é, presas no lugar, no
nível da situação”. São os que se conformam com o que aí está,
ou por concordarem com o sistema, ou por mero conformismo ou, o que é
mais frequente, por comodismo.
Por uma razão ou outra, que não cabe aqui analisar, os que se
comportam dessa maneira são a maioria. Foram condicionados, desde
crianças, a esse comportamento, pela educação que receberam dos
pais e/ou mestres. Ou melhor, foram “adestrados” para encarar o
mundo dessa maneira, respeitando hierarquias e abrindo mão da
própria vontade, liberdade e anseios ou, pelo menos, de considerável
parcela deles.
“Digamos que essa pessoa se conforme com as possibilidades
oferecidas, que viva aquém do horizonte oferecido por sua cultura e
pelo seu sistema”, prossegue Teixeira. Afinal, é o que
invariavelmente acontece com esse tipo de indivíduo. Conforma-se em
viver aquém da sua possibilidade, dissolve-se na massa e se
despersonaliza. Não raro, essas pessoas até são relativamente
cultas, têm razoável senso crítico, mas carecem de iniciativa. Não
são condutoras, mas conduzidas. Embora achem que um dia devam
ocorrer mudanças, torcem para que estas não ocorram enquanto
viverem, pois, no íntimo, as temem.
“Mas nem todas as pessoas são assim. Algumas são mais inquietas,
acham que algumas coisas estão escondidas, que deve ser possível ir
além do horizonte oferecido, tentam colocar o pescoço da sua
situação. Essas são as pessoas utópicas”, acrescenta o
professor. “Quer dizer, são ‘u-não’, elas negam a sua
situação, o seu topos. As pessoas tópicas, então, ficam dentro da
situação, vivem aquém do horizonte. E as pessoas utópicas negam a
situação, procuram ir além do horizonte”, completa Luiz Gonzaga
Teixeira.
Ocorre que não há consenso sobre a natureza, abrangência e
profundidade das mudanças necessárias para a criação de uma
sociedade que pelo menos se aproxime da ideal. Há, por exemplo, os
que propõem a anulação de todos os princípios e comportamentos
que caracterizam as mais diversas comunidades existentes, locais,
regionais ou nacionais, e que se comece tudo de novo, do “zero”,
o que, claro, raia o impossível.
Teixeira, porém, pondera em seu ensaio: “Algumas questões são
praticamente obrigatórias para quem toma essa atitude (de
inconformismo e de procura por se ir além do horizonte). Por
exemplo: ‘Como é ou como funciona esse lugar que buscamos?’.
‘Como chegar lá, qual é a técnica necessária para chegar lá?’.
‘Baseados em que valores, em que, vamos agir e vamos construir
esse outro lugar?’. ‘Quando começa a luta ou a construção, é
uma obra grandiosa ou é uma porção de coisinhas que podem ser
começadas imediatamente?’”.
As várias utopias já propostas (e as que ainda, certamente, vão se
propor) não objetivam mudar, apenas, a sociedade. Têm por escopo,
sobretudo, a mudança “da vida”, quer a de cada indivíduo, quer
a social e comportamental. O leitor pode ponderar: “as religiões e
as ideologias não têm, também, essas mesmas propostas?”. De
fato, têm. Mas cada uma delas restringe-se, apenas, ao seu próprio
âmbito. A Utopia, por seu turno, leva em consideração tanto o
indivíduo, quanto o grupo.
Luiz Gonzaga Teixeira pondera a propósito: “Para mudar a vida é
preciso levar em conta que a vida social tem três níveis: a)
Individual; b) Das relações entre as pessoas e c) O nível
político-econômico. Nisso a Utopia difere, por exemplo, das
religiões e do marxismo”. E prossegue: “As religiões, em geral,
atuam só sobre o nível primeiro, o individual. As religiões
acreditam que os outros níveis dependem desse primeiro: que basta
mudar o indivíduo, o coração, para que as relações e a sociedade
também mudem. Além disso, de nada adiantam as mudanças de qualquer
tipo se o coração das pessoas não mudar. A Utopia, embora insista
na importância dessas mudanças dentro das pessoas, no afeto, na
mentalidade, educação etc., não acredita que baste isso, nem que
isso baste para atingir os outros níveis, nem que todo o problema
seja só esse. Já o marxismo (e algumas outras ideologias), pelo
contrário, acredita que os dois primeiros níveis dependem do
último, que as pessoas, por dentro, e as relações entre as
pessoas, dependem do todo social, da política e da economia. A
Utopia discorda disso também, ainda mais profundamente. Nenhum dos
três níveis é mais importante”. Voltarei, certamente, a este
fascinante assunto oportunamente.
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