O artista e seu tempo
Pedro J. Bondaczuk
O tempo em que vive, com suas peculiares circunstâncias, determina a
forma de expressão do artista, notadamente do escritor? Vivesse em
outra época, que não esta, faria o tipo de arte que faz ou seguiria
outros rumos? O quanto o ambiente em que transita influencia no que é
e faz? Caso tivesse nascido no século XV ou, avançando no tempo, no
XXIII, seria, pelo menos, artista?
Essas indagações foram suscitadas por um trecho do livro “A
imortalidade”, de Milan Kundera, um dos melhores que já li nos
últimos anos. Tanto que ele é uma de uma meia dúzia de
obras-primas que considero fundamentais, tanto que separei da minha
vasta e caótica biblioteca e mantenho ao lado do computador, para
frequentes e sucessivas consultas.
O escritor checo lança a seguinte questão: “Quando um homem é
dotado para uma atividade para a qual o relógio soou a meia-noite
(ou ainda não soou a primeira hora), o que aconteceu com seu
talento? Vai se transformar? Vai se adaptar? Cristóvão Colombo se
transformaria em diretor de uma sociedade transportadora? Shakespeare
escreveria roteiros para Hollywood? Picasso produziria histórias em
quadrinhos? Ou então todos esses grandes talentos se retirariam do
mundo, partiriam, por assim dizer, para algum convento da História,
cheios de decepção cósmica por terem nascido em má hora, fora da
época para a qual estariam destinados, fora do mostrador que marcava
a época deles? Abandonariam seu talento intempestivo como Rimbaud,
que com dezenove anos abandonou a poesia?”.
E você, caro leitor, qual sua opinião a respeito? Claro que, em
qualquer atividade, o “se”, o condicional, o que não aconteceu,
mesmo podendo ter acontecido, não conta. Trata-se, apenas, de
provocação para reflexão, sem nenhum sentido prático. Da minha
parte, entendo que se os gênios citados por Kundera nascessem em
épocas diferentes das que nasceram, não seriam, jamais, o que
foram. Poderiam, claro, ser até melhores. Penso, contudo, que seriam
piores.
A propósito de Arthur Rimbaud, sempre me intrigou o fato dele ter
aberto mão do seu absurdamente imenso talento tão cedo, privando o
mundo de sua poesia mágica e original. Se, parando de compor aos 19
anos, compôs tantos e fantásticos poemas, o que não poderia ter
composto se o fizesse, digamos (para não exagerar) até os 40?
Mas... Aqui entra, novamente, a questão do “se”. E o condicional
não conta, nem na arte e nem na vida. Afinal, não aconteceu.
O próprio Kundera cita esta maravilha de versos de Rimbaud:
“Nas noites azuis de verão
irei pelos caminhos
no meio do trigo,
pisando a relva tenra…
Não falarei nada,
não pensarei em nada…
e irei longe, muito longe,
como um cigano
no meio da natureza
feliz como se estivesse
com uma mulher”.
Lindo! Lindíssimo! Mágico! E se Rimbaud vivesse nos nossos dias,
escreveria esses versos? Faria coisa melhor? Sua obra seria pior?
Seria, pelo menos, um poeta? Nunca iremos saber!
Acho curioso o gosto dos leitores (em muitos casos, mau gosto). “A
Imortalidade” não é, dos livros de Milan Kundera, o mais vendido,
o mais comentado e o que foi melhor recebido pela crítica. É
verdade que sua obra literária (felizmente) é vasta e variada.
Outra coisa que não entendo é a razão dele jamais ter sido sequer
indicado, e, portanto, nunca foi premiado, com o Nobel de Literatura.
O cara é muito bom no que faz. Leiam-no com a devida atenção e,
certamente, concordarão comigo.
O livro de Kundera mais conhecido (e badalado) é “A insustentável
leveza do ser”, publicado em 1983. Trata-se, sem dúvida, de
excelente romance. Não discuto, e nem poderia, sua qualidade. Longe
disso. Mas se tivesse que fazer uma comparação, não passaria nem
perto de “A Imortalidade”, publicado em 1990. Esse é seu romance
mais cosmopolita, em que ele abandona a temática que vinha seguindo
até então, de cunho político e social, e passa a dar conteúdo
profundamente filosófico ao que escreve. Daí eu tê-lo até como
material de consulta e não como mero romance para minha distração.
E Kundera, caso houvesse nascido, digamos, no século XIV, ou então
no XXIV, seria o escritor que é? Escreveria livros melhores, piores
ou iguais “A Imortalidade”? Teria o estilo gostoso que tem,
fluente, coloquial, mas não raro irônico, crítico e provocativo?
Seria, pelo menos, escritor? Da minha parte, entendo que não? E
você, leitor, o que pensa a respeito?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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