Inconsciente coletivo?
Pedro J. Bondaczuk
Um dos tipos de enredo mais fascinantes de se ler – em romances,
contos, novelas ou mesmo em peças de teatro ou roteiro de cinema –
é o que mistura personagens históricos que de fato existiram, e que
marcaram seus nomes na memória dos povos, por todas as gerações
que se sucederam à sua morte, com outros fictícios, criados pelo
autor. É uma literatura, porém, das mais complicadas de se fazer,
pois implica em muita pesquisa (de cenários, vestimentas, falas
etc.) para conferir verossimilhança à história narrada.
São inúmeros os livros com essas características, tantos que se
torna redundante citar algum. Certamente o leitor terá em mente, e
sem precisar pensar muito, vários deles. Há tempos, por exemplo,
venho ensaiando escrever um conto (cujo enredo tenho na pontinha da
língua), tendo por cenário a cidade de Pompéia e por época, a da
véspera da erupção do Vesúvio que arrasou (assim como a
Herculano) essa localidade romana.
O que está me travando são os detalhes sobre como os pompeianos
viviam, como eram suas casas, qual sua maneira de falar, vestir,
proceder, quais os assuntos de que tratavam em conversas informais
etc. Com paciência, tenho certeza, a história vai sair, no seu
devido tempo.
Alguns livros com essas características são tão detalhados, os
textos são tão naturais e espontâneos, que nos fica, até, a
impressão que o autor testemunhou os fatos históricos que fazem o
pano de fundo de seus enredos. Há quem atribua tamanha precisão ao
que o célebre psicanalista Carl Gustav Jung chamou de “inconsciente
coletivo”.
Esse eminente cientista suíço, que devassou a alma humana em busca
de explicações do porque das nossas atitudes e reações, levantou
a tese de que determinadas lembranças de nossos ancestrais seriam
transmitidas à sua descendência (no caso, nós) nos próprios genes
dos descendentes.
Isso explicaria a sensação que às vezes temos, diante de
determinadas paisagens, por exemplo, de que já estivemos num certo
lugar, para onde na verdade nunca fomos antes, ou que vivemos certos
dramas dos quais acabamos de tomar conhecimento, mas que nos parecem
sumamente familiares. Seria isso? Até pode ser! Atribuo, porém,
essa precisão narrativa, basicamente, ao talento dos escritores.
Querem um exemplo mais específico desse tipo de enredo em que parece
que o autor presenciou o fato histórico que lhe serve de pano de
fundo ou conheceu pessoalmente o vulto histórico, do qual traça o
perfil? Cito o conto “Um lugar para passar a noite”, de Robert
Louis Stevenson (programado para oportuna publicação em nossa
coluna de finais de semana intitulada “Clássicos”).
Nele, o autor de “O médico e o monstro” fala do poeta maldito,
François Villon, com tanta naturalidade, que nos deixa a impressão
de haver convivido com ele. Óbvio que não conviveu. Afinal, cerca
de sete séculos separam o nascimento de um e de outro. Além de não
serem contemporâneos, sequer eram conterrâneos. Villon era francês.
Stevenson, por seu turno, nasceu na Inglaterra. A impressão que
fica, contudo, é a de que os dois foram não apenas da mesma época,
mas principalmente amigos íntimos.
Aliás, sobre o famoso poeta-bandido, recomendo-lhes a leitura de
“Balada dos enforcados e outros poemas”. Dessa forma, poderão
conhecer a genialidade de uma das mais estranhas e contraditórias
figuras de toda a literatura mundial, sobre a qual escrevi o
equivalente a um livro, pelo fascínio que me desperta. Teria
convivido com Villon? Impossível. Algum ancestral meu conviveu?
Improvável! Seria fruto do “inconsciente coletivo”? Quem sabe?
A propósito do livro recomendado, ressalte-se a primorosa tradução
(e dizer isso chega a ser até redundante face à sua reconhecida
competência) de Péricles Eugênio da Silva Ramos. A obra poética
de Villon foi lançada em 2008 pela Editora Hedra.
Outro livro, nessa mesma linha, que recomendo sem titubear, é “Os
melhores contos que a história escreveu”, antologia organizada
por Flávio Moreira da Costa, que também redigiu as notas, com a
colaboração de Celina Portocarrero.
É de se notar o quadro de tradutores, composto por Adriana Lisboa,
Celina Portocarrero, Leo Schlafman, Luís Carlos Cabral, Maria Luiza
X. de A. Borges, Domingos Zamagna, Boris Schnaiderman, Berenice
Xavier, Aleksandar Jovanovic, Marcelo Backes e o próprio Flávio
Moreira da Costa. São 557 páginas da melhor literatura, com o
reconhecido padrão de qualidade da Editora Nova Fronteira.
Aliás, o melhor conto que li, tendo François Villon por personagem,
foi escrito por um escritor norte-americano um tanto quanto obscuro
(tanto que sequer me lembro seu nome), que publicou a história não
em livro, mas na revista “Mistério Magazine de Ellery Queen”,
que colecionei por cerca de cinco anos.
Procurei feito um doido o exemplar em que a história está inserida,
mas minha biblioteca está um caos (uma desgraça!), tem excesso de
volumes e todos sem guardar nenhuma ordem lógica. Faço questão,
porém, de, assim que encontrar o texto, escrever uma crônica
inteira a respeito, até por questão de justiça.
No comments:
Post a Comment