Obra boa pede bis
Pedro J. Bondaczuk
O escritor, ao concluir um livro e, especialmente, após publicá-lo,
quase sempre fica com aquela sensação de que faltou alguma coisa
nele. Este personagem poderia ser melhor descrito, aquele cenário
não teve tantos detalhes, a narrativa em determinado momento ficou
repetitiva e vai por aí afora. Mesmo que o leitor considere a obra
perfeita, o autor nem sempre (diria nunca) tem essa visão de
perfectibilidade.
Quando se trata de não-ficção, alguns autores procedem a essas
“revisões” em edições posteriores. Alguns chegam a acrescentar
(ou suprimir, ou ambas as coisas) capítulos inteiros. Nem assim
ficam satisfeitos. Sentem que ainda assim faltou algum detalhe ou que
algo de supérfluo permaneceu. E tome mais revisões. Fazem-nas, sem
temor, em várias edições sucessivas.
E em ficção, ocorre o mesmo? “Você já viu algum romance ser
modificado, de uma edição para outra?”, perguntará o cético
leitor. Quer a resposta? Sim, vi! Vi e gostei! E não porque a
primeira versão não fosse boa, muito pelo contrário. A segunda
virou, na verdade, um novo livro, que lembra remotamente o primeiro,
mas é mais completa, detalhada, abrangente e talvez definitiva. Mas
ambas são sumamente criativas.
E quem é o autor dessa façanha, virtualmente inédita? É o
escritor catarinense Godofredo de Oliveira Neto. E não se trata de
nenhum “curioso” que tenha desenvolvido bem uma história que lhe
veio eventualmente à cabeça e que contou com a tão falada “sorte
de principiante”. Longe disso. É, na verdade, pessoa envolvida até
o pescoço com Literatura e que conhece, portanto, todos os seus
meandros, até os que impliquem em “armadilhas” para os
desavisados.
Godofredo é nada menos do que professor de Letras Vernáculas da
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Só
podia ser, mesmo, um “expert” para empreender tamanha ousadia. E
qual foi o livro, reescrito com tamanha perícia, que um leitor
distraído certamente vai achar que se trate de novo romance,
excelente como a versão original? É “Marcelino”, lançado em
meados do ano passado pela Editora Imago. Quem não leu, deveria ler.
E as duas versões, claro. Ambas são uma aula de como escrever bem
uma história, dando-lhe clima, suspense e, sobretudo,
verossimilhança.
Godofredo revelou, em entrevista que li na internet, que esta segunda
versão nasceu praticamente por acaso. Foi quando tentou roteirizar
para o cinema o romance “Marcelino Nambre, o manumisso” (este era
o título da edição original lançada em 2000). Revelou que foi
escrevendo, escrevendo, acrescentando um detalhe aqui, outro ali,
trazendo à cena novos personagens e situações e, quando se deu
conta... Estava escrito, na verdade, novo livro.
A história (nas duas versões) se passa, em boa parte, na Praia do
Nego Forro, em Santa Catarina. A bem da verdade, começa e termina
ali. Mas a parte da ação e do suspense tem por cenário o Rio de
Janeiro de 1942, no auge da Segunda Guerra Mundial, quando a sempre
fascinante Cidade Maravilhosa ainda era a capital do País.
Marcelino, neto de escravo açoriano com uma índia é, aos 18 anos
de idade, o melhor pescador de lagostas da região. Com testoterona
brotando por todos os poros, no auge da juventude, envolve-se,
amorosa e sexualmente, com três mulheres: a balzaquiana Eve; a
adolescente Sibila (filha do senador Nazareno Correia da Veiga de
Montibello), com a qual foi praticamente criado e Martinha, que após
regressar do Rio de Janeiro, depois de escapar, quase que por
milagre, da morte, após ser preso e torturado pela polícia de
Getúlio Vargas, descobriu ser o amor da sua vida.
Querem saber mais detalhes? E vocês acham que eu iria ser o
estraga-prazeres e os revelar?! Ora, ora, comprem o livro! Aliás,
não só a segunda versão, como a que a inspirou e a originou.
Garanto que não irão se decepcionar.
Saberão, entre outras coisas, como era o País há mais de 70 anos.
Até quais eram os programas de rádio preferidos dos nossos avós,
quais os produtos da moda, como eram as propagandas naqueles tempos
já tão remotos e outras coisas mais.
Há pouco mais de meio século, o apresentador Enzo de Almeida Passos
comandava um programa, na Rádio Bandeirantes de São Paulo
(apresentado, também, por várias de suas afiliadas) de grande
sucesso de audiência (tanto que permaneceu no ar por décadas),
intitulado “Telefone pedindo bis”. Foi, na verdade, uma das
primeiras experiências bem-sucedidas de interação entre
comunicador e receptor da comunicação.
Lembro isso a propósito do livro de Godofredo de Oliveira Neto.
“Qual é a relação?”, perguntará, atônito, o leitor, achando
que o cronista ensandeceu. É o título do programa. Só que no caso
dos dois livros do escritor catarinense, a expressão que cabe a
caráter é: “Obra boa pede bis”. E não é um fato?!
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