Inéditos, porém escritores
Pedro J. Bondaczuk
Quantos livros alguém tem que publicar para poder ser chamado de
escritor? “Pelo menos um”, opinam alguns. “Muitos”, garantem
outros. “Nenhum”, concluem vários interlocutores. O que
caracteriza um escritor, óbvio, é o fato de “escrever”. É
condição “sine qua non” para alguém se enquadrar nessa
categoria.
Claro que se não publicar o que escreveu, não terá nenhuma
visibilidade. Os textos que produzir não irão chegar às mãos do
destinatário natural e final, o leitor. Pouquíssima gente saberá
da sua aptidão: um ou outro parente, algum amigo mais chegado e
talvez (quem sabe) algum colega de trabalho. Nem por isso, porém,
essa pessoa deixará de ser escritora.
Gabriela Mistral, notável, porém humilde professorinha do interior
do Chile, nunca pensou em publicar um só livro que fosse. Escrevia
com o objetivo exclusivo de transmitir lições aos seus alunos.
Tinha no magistério a maior (e talvez única) paixão da sua vida.
Seu talento, porém, era tão imenso, que os amigos consideravam seu
ineditismo um absurdo desperdício, até uma heresia. Reuniram
dezenas de poemas dela – publicados, a maioria, em pequenos jornais
do interior do Chile – e compuseram um volume, cuja publicação
bancaram do próprio bolso. Resultado? Esse único e solitário
livro, fruto do reconhecimento e do carinho dos admiradores, valeu a
Gabriela Mistral (pasmem!) um Prêmio Nobel de Literatura!
Inúmeros outros escritores, mundo afora, não têm o mesmo
tratamento. Escrevem, escrevem e escrevem, publicam textos e mais
textos em jornais – às vezes nos de grande circulação, mas na
maioria dos casos em obscuros jornaizinhos de bairro ou em boletins
de escolas, empresas, sindicatos ou paróquias – e suas carreiras
nunca decolam.
Todos perdem com isso. O escritor, por não ter o talento não
somente reconhecido, como sequer revelado. As editoras, que poderiam
faturar um bom dinheiro com obras de qualidade superior. A população,
que se vê privada de pérolas de pensamento e criatividade. E,
principalmente, o leitor, que deixa de se ilustrar melhor.
Há centenas, quiçá milhares de Prêmios Nobel de Literatura em
potencial desperdiçados por aí. E essa gente talentosa não deixa
de ser escritora, embora permaneça rigorosamente inédita. Há casos
e mais casos de escritores que publicam um único e solitário livro
e ficam, a exemplo de Gabriela Mistral, para sempre registrados na
História da Literatura.
É o caso, a rigor, do mexicano Juan Rulfo, por exemplo. Sempre que
se menciona seu nome, logo vem à mente “Pedro Páramo/O Planalto
em Chamas” (que são, na verdade, dois livros, reunidos num só
volume). Escreveu outras coisas, mas ninguém sequer tomou
conhecimento. Nunca mais alcançou a magia da sua única obra
conhecida.
Fernando Pessoa publicou, em vida, com o seu próprio nome, só um
livro. Hoje, porém, há uma infinidade deles, póstumos, de autoria
do magistral poeta português, e outros tantos, certamente, virão,
já que os pesquisadores sequer chegaram à metade do quase
inesgotável e célebre “baú” repleto de textos inéditos que
ele deixou ao morrer.
Há, é verdade, escritores sumamente prolíficos. A obra do jurista
Pontes de Miranda, por exemplo, ascende a mais de 150 publicações.
E não são, apenas, livros jurídicos, como muitos podem pensar.
Legou-nos lúcidos e bem compostos ensaios, repletos de sabedoria e
luz, que recomendo a todos que possam ter acesso a eles. Emile Zola
foi outro que teve bibliografia das mais copiosas, assim como Honoré
Balzac, Camilo Castelo Branco e tantos e tantos outros.
Nem por isso, no entanto, os que publicaram muito foram mais
escritores do que os que lançaram um único livro, ou até mesmo
nenhum. Vez por outra, topamos, em meio a embolorados, poeirentos e
amarelecidos papéis pessoais de determinadas pessoas, descartados
como lixo por herdeiros, com originais extraordinários e ficamos
pasmos com o que a falta de oportunidades pode ocasionar.
O sucesso, portanto, e não raro a mera visibilidade do escritor
dependem (talvez mais do que os que se dedicam a outras tantas
atividades) de um aspecto que o filósofo espanhol, José Ortega y
Gassett tratou com tanta propriedade em sua obra( e sobre o qual
escrevi inúmeros textos): das circunstâncias.
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