Obrigação
de criar
Pedro
J. Bondaczuk
A melhor definição que já
ouvi a respeito de quem vive de fazer arte – não importa se
pintura, música, escultura ou literatura – é a de que “o
artista é o sujeito que tem a obrigação de criar”. Não me peçam
para explicar isso racionalmente, porquanto não sei. Só sei (e por
“sentir” isso, por exclusiva intuição) que se trata de
realidade. E quem o obriga a ser criativo e a produzir, produzir e
produzir, sem cessar, sem se importar com resultados práticos,
notadamente os pecuniários? Boa pergunta. Da minha parte, sinto-me,
de fato, obrigado a tal, em todos os momentos do dia e todos os dias
da minha vida. Só não sei determinar, ou identificar, ou perceber
por quem.
Fazer arte, quero deixar bem
claro, me dá prazer. Não entendo o talento que tenho como sendo
“maldição”, como muitos artistas consideram. Na maior parte do
tempo, criar me dá imensa e incomparável satisfação. Mas nunca o
tempo todo. Considero-me pessoa normal (está bem, sou um tanto
excêntrico, admito), e gosto das mesmas coisas que você gosta,
cético leitor.
Contudo, uma voz interior me
compele a criar, criar e criar, a produzir, e produzir, e produzir
mesmo quando não me sinto disposto a tal, ou quando tenho outros
afazeres e compromissos (sociais, por exemplo), que não tenham nada
a ver com arte. Nesses momentos – embora, não raro, produza até
mais e melhor do que quando o faço com satisfação – me sinto
tentado a concordar com Thomas Mann, que escreveu, no livro “Os
famintos e outras histórias”: “Ah!, só uma vez, por uma única
noite como aquela, não ser artista, ser apenas homem! Escapar uma só
vez da maldição que ressoava em seu ouvido, dizendo: ‘Você não
tem o direito de viver, precisa criar! Não deve amar, mas saber!’”
Minha compulsão não chega a
tanto... mas quase. Não raro, nas minhas horas de lazer – quando
estou num teatro, por exemplo, assistindo a uma boa peça ou me
deliciando com os acordes de magnífica orquestra sinfônica; ou num
estádio de futebol vendo a minha Ponte Preta jogar; ou num cinema,
apreciando a um bom filme ou mesmo em casa, fazendo amor – uma voz,
monótona, incômoda, recorrente e impositiva, parece me lembrar a
todo o instante: “Você não tem o direito de viver, precisa
criar!”. E lá vou eu escrever, apaixonada e furiosamente, textos e
mais textos, que possivelmente não serão lidos por ninguém ou, se
forem, o serão por pessoas interessadas, apenas, em encontrar
defeitos na escrita e contradições nas idéias. E, no entanto...
persisto, persisto e persisto por dias, meses, décadas, pela vida
afora. Por que? Boa pergunta: por que?
Ocorre que para fazer arte com
competência (já não digo com perfeição, pois esta nos é
interdita), é necessário muito exercício prévio, longo
aprendizado, horas e mais horas de paciente e meticulosa observação.
Só o talento não basta para produzir obras que valham a pena. É
preciso aliar à sensibilidade e vocação, a técnica, a forma, o
“como fazer”. E isso não nasce conosco e nem acontece
espontaneamente, por acaso, sem que precisemos nos esforçar às
vezes ao limite das nossas forças.
O editor-chefe da revista
“Skeptic”, Michael Shermer, afirma que, para podermos nos
considerar artistas razoavelmente bons, devemos passar, no mínimo,
por 10 mil horas de preparação. Declarou, em entrevista publicada
no suplemento “Mais!”, do jornal Folha de S. Paulo, de 14 de
setembro de 2001: “O que é preciso para ser um gênio criativo e
alcançar o topo de sua área? Primeiro de tudo, há uma regra das 10
mil horas mínimas. Se você quer dominar um esporte ou uma
habilidade, isso vem com 60 horas por semana durante três anos e
meio. Isso é verdade em todas as profissões. Não significa que
você vai conseguir. Boa biologia e genes ajudam. Mas olhe Mozart.
Ele não surgiu do nada como algumas pessoas pensam. Ele teve o pai e
o treinamento e fez as 10 mil horas aos 6 anos. Devoção precoce
ajuda o gênio a sair”.
“E a inspiração, não
conta?”, perguntará o leitor, que produz, eventualmente, alguma
espécie de arte e, por isso, já se julga “artista”, mesmo não
sendo. Bem, não gosto dessa palavra, que induz muita gente a
equívocos, principalmente ao de achar que se pode produzir uma obra
de arte consistente e duradoura “apenas” porque num determinado
momento se tem uma centelha de criatividade. Evidentemente, não se
pode. A esse propósito, penso como o eminente folclorista potiguar,
Luís da Câmara Cascudo, um dos homens mais lúcidos e cultos que
este país já produziu: “Não sei o que é inspiração. É a
mesma coisa que amor, que simpatia. O que é simpatia? Por que é que
você simpatiza uma pessoa e antipatiza outra? Qual é o órgão que
funciona? É um mistério”. E é mesmo.
Mas qual é a definição
desse momento mágico do verdadeiro artista, na concepção de
Cascudo (e na minha)? “Inspiração é o estado de gravidez em hora
do parto. Você quer dizer a um sujeito que não acredita em
fecundação? O que é obscuro é o processo de fecundação. As
coisas obscuras é que engravidam você para você escrever. Que não
é o último caso. É uma soma emocional que se capitaliza em você.
Felizmente, eu nunca aprendi gramática, que é inutilizadora de
grandes talentos, exceção feita apenas a Machado de Assis, que era
nato. No dia em que ele viu uma gramática, se assombrou”.
É certo que não me sinto e
nem me considero “amaldiçoado” por este talento inato que
possuo, mas que requer permanente aprimoramento, que é a facilidade
de escrever. Sinto-me, todavia, de certa forma escravizado a ele,
dada esta voz misteriosa que me exorta, compele, espicaça e obriga a
criar, criar, criar, mesmo quando me sinto vazio e não tenho, como
agora, nada a dizer.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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