Ópera popular
Pedro J. Bondaczuk
“Os desfiles de escolas de samba, principalmente os do Rio de
Janeiro, que são mais sofisticados e melhor produzidos, são, a
rigor, apresentações de óperas, posto que populares. Com a
vantagem, sobre as tidas como eruditas, de que o espectador pode se
deliciar com doze peças, em duas noites consecutivas, em vez de
assistir a apenas uma, das companhias operísticas tradicionais”.
Com estas palavras, iniciei uma longa conversa (que deverá render
vários textos, aqui no Literário e em outros espaços da internet
que frequento) ontem, com um amigo, intelectual de reconhecida
cultura, mas que tem visão estritamente reducionista a propósito
Nosso assunto foi o carnaval. Ele, apresentando todos os argumentos
contrários a essa nossa tradicional festa popular. Eu, da minha
parte, mesmo admitindo alguns excessos, ressaltado o lado positivo, o
artístico sobretudo, desse evento anual.
Meu interlocutor, diante da minha afirmativa inicial, olhou-me de
forma irônica e até um tanto assustada, dando a entender que se
surpreendera comigo e que eu havia dito o maior dos disparates. “Você
não pode comparar as duas coisas, que são imiscíveis, como óleo e
água Pedrão”, respondeu-me, um tanto a contragosto, e em tom um
tanto pedante, destes que às vezes adotamos com crianças às quais
buscamos explicar algum conceito que extrapole seu nível de
compreensão.
“Por que?”, indaguei, perplexo, porquanto esperava que o amigo
contrapusesse minhas ideias com outras, lógicas, e não com a tática
de ridicularizar quem diz algo com o que não concordamos. “Ora,
ópera ao ritmo de samba?! Só na sua cabeça!. Esse é um gênero
musical que implica em sofisticação rítmica, em técnicas apuradas
de canto, em enredos eruditos e criativos”, respondeu-me.
Redargui-lhe, no entanto, que ele estava equivocado a propósito.
Lembrei-lhe que a ópera surgiu com a intenção de ser manifestação
cultural popular. Ocorre que na época do seu surgimento, o atraso
das massas (e numa Europa tida hoje como modelo de civilização) era
tamanho, por carência de informações, que ela acabou por se
elitizar automaticamente. Eram raros os que tinham capacidade para
compreendê-la e, por isso, apreciá-la.
Argumentei que então, não existiam os meios de comunicação de que
dispomos e aos quais até as pessoas muito pobres têm acesso. Não
havia rádio, televisão e muito menos internet. Se alguém ousasse
prever a invenção do computador, e ainda mais do PC, seria
considerado insano e ninguém lhe daria a menor atenção. Isso se
não providenciassem sua internação urgente em algum manicômio.
Até mesmo os jornais estavam, apenas, engatinhando.
Meu amigo, claro, não se convenceu. “Ópera composta para
instrumentos de percussão? Ainda mais samba? Você está
delirando!”, tentou, dessa forma, desqualificar meu argumento. “E
o enredo? Você quer comparar essas coisas cantadas exaustivamente no
sambódromo com ‘Carmem”, ou com ‘Aida” ou mesmo com ‘O
barbeiro de Sevilha’?! Você só pode estar brincando”.
Resolvi apelar, mas não da maneira que vocês possam pensar (e que
na verdade já tanto queria), mandando o tal amigo para a pqp. Não,
não foi esse o tipo de apelação a que recorri. Ocorre que gravei
os desfiles de 2010 no Rio de Janeiro. Nem sei porque fiz isso, pois
nos anos anteriores nunca os havia gravado. Fui até o armário em
que estava a fita, coloquei-a no aparelho de TV, e parei na
apresentação da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense.
Para facilitar minha argumentação, entreguei-lhe a letra do
samba-enredo, que penosamente havia transcrito no computador e
imprimido, para o meu deleite pessoal e não para servir de prova ou
coisa que o valha. Gosto de tudo o que é bem feito, não importa o
que ou por quem.
“Leia esta letra. Não é um primor de poesia?”. E passei a ler
em voz alta a letra do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, cujo
título era “Brasil de todos os deuses”:
“Terra abençoada!
Morada divinal.
Brilha a coroa sagrada,
reina Tupã no Carnaval…
Viu nascer a devoção em cada amanhecer
viu brilhar a imensidão de cada olhar
num país da cor da miscigenação,
de tanto deus, tanta religião
pro povo feliz cultuar.
O índio dançou em adoração,
o branco rezou na cruz do cristão,
o negro louvou os seus orixás,
a luz de Deus é a chama da paz.
E sob as bênçãos do céu/e o véu do luar
navegaram imigrantes
de tão distante, pra semear
traços de tradições, laços de religiões.
Ó Deus pai! Iluminai o novo dia!
Guiai ao divino destino
seus peregrinos em harmonia
a fé enche a vida de esperança
na infinita aliança
traz confiança ao caminhar
e a gente romeira, valente festeira
segue a acreditar
a Imperatriz é um mar de fiéis
no altar do samba em oração.
É o Brasil de todos os deuses!
De paz, amor e união”.
Depois de ler este magnífico poema, voltei-me para meu atônito
interlocutor e desafiei-o: “Diga-me, e prove-me (como eu acabei de
fazer), que ópera das tantas que você conhece (e que conheço
também, pois, como você sabe, sou fiel apreciador do gênero), tem
tamanho conteúdo? E num tema tão difícil, ou seja, o da religião,
que tanto sangue já fez jorrar ao longo da história. E tudo isso
acompanhado de imagens concretas, de carros alegóricos e vestes
apropriados, e cantado por uma multidão de artistas, se não me
falha a memória 3.600, sem destoar e nem sair uma vez sequer do
ritmo. Ademais, essa belíssima ópera, e insisto nesse ponto, foi
apresentada não por tenores, barítonos, sopranos etc,
profissionais, mas pelo povo simples e comum. E não me venha dizer
que estou inventando moda! É ópera, sim senhor, e da melhor
qualidade!”, arrematei.
Meu amigo não se mostrou convencido e contra-argumentou. Mas... seu
questionamento e minha respectiva contra-argumentação revelarei a
vocês algum dia, possivelmente amanhã ou talvez nunca. Por
enquanto, reflitam sobre o assunto e concluam com quem está a razão.
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