Wednesday, February 07, 2018


Ópera popular

Pedro J. Bondaczuk

Os desfiles de escolas de samba, principalmente os do Rio de Janeiro, que são mais sofisticados e melhor produzidos, são, a rigor, apresentações de óperas, posto que populares. Com a vantagem, sobre as tidas como eruditas, de que o espectador pode se deliciar com doze peças, em duas noites consecutivas, em vez de assistir a apenas uma, das companhias operísticas tradicionais”.

Com estas palavras, iniciei uma longa conversa (que deverá render vários textos, aqui no Literário e em outros espaços da internet que frequento) ontem, com um amigo, intelectual de reconhecida cultura, mas que tem visão estritamente reducionista a propósito Nosso assunto foi o carnaval. Ele, apresentando todos os argumentos contrários a essa nossa tradicional festa popular. Eu, da minha parte, mesmo admitindo alguns excessos, ressaltado o lado positivo, o artístico sobretudo, desse evento anual.

Meu interlocutor, diante da minha afirmativa inicial, olhou-me de forma irônica e até um tanto assustada, dando a entender que se surpreendera comigo e que eu havia dito o maior dos disparates. “Você não pode comparar as duas coisas, que são imiscíveis, como óleo e água Pedrão”, respondeu-me, um tanto a contragosto, e em tom um tanto pedante, destes que às vezes adotamos com crianças às quais buscamos explicar algum conceito que extrapole seu nível de compreensão.

“Por que?”, indaguei, perplexo, porquanto esperava que o amigo contrapusesse minhas ideias com outras, lógicas, e não com a tática de ridicularizar quem diz algo com o que não concordamos. “Ora, ópera ao ritmo de samba?! Só na sua cabeça!. Esse é um gênero musical que implica em sofisticação rítmica, em técnicas apuradas de canto, em enredos eruditos e criativos”, respondeu-me.

Redargui-lhe, no entanto, que ele estava equivocado a propósito. Lembrei-lhe que a ópera surgiu com a intenção de ser manifestação cultural popular. Ocorre que na época do seu surgimento, o atraso das massas (e numa Europa tida hoje como modelo de civilização) era tamanho, por carência de informações, que ela acabou por se elitizar automaticamente. Eram raros os que tinham capacidade para compreendê-la e, por isso, apreciá-la.

Argumentei que então, não existiam os meios de comunicação de que dispomos e aos quais até as pessoas muito pobres têm acesso. Não havia rádio, televisão e muito menos internet. Se alguém ousasse prever a invenção do computador, e ainda mais do PC, seria considerado insano e ninguém lhe daria a menor atenção. Isso se não providenciassem sua internação urgente em algum manicômio. Até mesmo os jornais estavam, apenas, engatinhando.

Meu amigo, claro, não se convenceu. “Ópera composta para instrumentos de percussão? Ainda mais samba? Você está delirando!”, tentou, dessa forma, desqualificar meu argumento. “E o enredo? Você quer comparar essas coisas cantadas exaustivamente no sambódromo com ‘Carmem”, ou com ‘Aida” ou mesmo com ‘O barbeiro de Sevilha’?! Você só pode estar brincando”.

Resolvi apelar, mas não da maneira que vocês possam pensar (e que na verdade já tanto queria), mandando o tal amigo para a pqp. Não, não foi esse o tipo de apelação a que recorri. Ocorre que gravei os desfiles de 2010 no Rio de Janeiro. Nem sei porque fiz isso, pois nos anos anteriores nunca os havia gravado. Fui até o armário em que estava a fita, coloquei-a no aparelho de TV, e parei na apresentação da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense.

Para facilitar minha argumentação, entreguei-lhe a letra do samba-enredo, que penosamente havia transcrito no computador e imprimido, para o meu deleite pessoal e não para servir de prova ou coisa que o valha. Gosto de tudo o que é bem feito, não importa o que ou por quem.

“Leia esta letra. Não é um primor de poesia?”. E passei a ler em voz alta a letra do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, cujo título era “Brasil de todos os deuses”:

“Terra abençoada!
Morada divinal.
Brilha a coroa sagrada,
reina Tupã no Carnaval…

Viu nascer a devoção em cada amanhecer
viu brilhar a imensidão de cada olhar
num país da cor da miscigenação,
de tanto deus, tanta religião
pro povo feliz cultuar.

O índio dançou em adoração,
o branco rezou na cruz do cristão,
o negro louvou os seus orixás,
a luz de Deus é a chama da paz.

E sob as bênçãos do céu/e o véu do luar
navegaram imigrantes
de tão distante, pra semear
traços de tradições, laços de religiões.
Ó Deus pai! Iluminai o novo dia!
Guiai ao divino destino
seus peregrinos em harmonia
a fé enche a vida de esperança
na infinita aliança
traz confiança ao caminhar
e a gente romeira, valente festeira
segue a acreditar
a Imperatriz é um mar de fiéis
no altar do samba em oração.
É o Brasil de todos os deuses!
De paz, amor e união”.

Depois de ler este magnífico poema, voltei-me para meu atônito interlocutor e desafiei-o: “Diga-me, e prove-me (como eu acabei de fazer), que ópera das tantas que você conhece (e que conheço também, pois, como você sabe, sou fiel apreciador do gênero), tem tamanho conteúdo? E num tema tão difícil, ou seja, o da religião, que tanto sangue já fez jorrar ao longo da história. E tudo isso acompanhado de imagens concretas, de carros alegóricos e vestes apropriados, e cantado por uma multidão de artistas, se não me falha a memória 3.600, sem destoar e nem sair uma vez sequer do ritmo. Ademais, essa belíssima ópera, e insisto nesse ponto, foi apresentada não por tenores, barítonos, sopranos etc, profissionais, mas pelo povo simples e comum. E não me venha dizer que estou inventando moda! É ópera, sim senhor, e da melhor qualidade!”, arrematei.

Meu amigo não se mostrou convencido e contra-argumentou. Mas... seu questionamento e minha respectiva contra-argumentação revelarei a vocês algum dia, possivelmente amanhã ou talvez nunca. Por enquanto, reflitam sobre o assunto e concluam com quem está a razão.




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