Múltiplas faces
Pedro J. Bondaczuk
As metáforas são formas inteligentes (mas nem sempre) de dizer as
coisas de maneira transversa, figurada, em que se diz uma coisa
pretendendo que o interlocutor entenda outra. Uma expressão
metafórica, por exemplo, é a caracterização do hipócrita como
pessoa de “duas caras”. Ou seja, do sujeito que é uma coisa na
nossa presença – quando se desmancha em elogios, não raro
exagerados – e outra muito diferente longe de nós. Quando
distante, fala cobras e lagartos a nosso respeito e não raro (ou
quase sempre) inventa defeitos que sequer temos ou tivemos.
Literalmente, todavia, todos temos não apenas duas, mas múltiplas
faces. Não simultaneamente, óbvio, pois nem o camaleão consegue
mudanças tão rápidas e definitivas. Essa metamorfose ocorre ao
longo de uma vida e sequer me refiro às mudanças que se verificam
em pensamentos, sentimentos e/ou comportamentos. Refiro-me,
exclusivamente, ao aspecto físico.
Outro dia, estive folheando um dos vários álbuns de fotografia que
tenho, com imagens de várias etapas da minha vida. Ele começa por
uma foto minha quando bebê, a única que me restou, já que as
outras ficaram em mãos de parentes – pais, tios, avós etc. –
mas pelo menos esta foi salva, a testemunhar que um dia, também, fui
um recém-nascido “fofinho”, como asseguram as tias corujas. Pois
é, há momentos em que até chego a duvidar disso.
Mas a metamorfose pela qual passei começou a ficar clara com a
comparação de duas imagens: uma, datada de 1948, quando eu tinha
cinco anos de idade, na fazenda do meu avô paterno, em Horizontina,
Rio Grande do Sul e outra de 1951, tirada em São Caetano do Sul, na
Grande São Paulo.
A primeira mostra um guri loirinho, cabeça raspada, à exceção de
uma franja na frente, conforme o figurino de então para crianças. A
segunda, retrata um garoto já querendo assumir (prematurissimamente)
ares de adulto, com farta cabeleira, muito bem penteada e fixada com
brilhantina. Poucos traços levariam um estranho a supor que se
tratasse do mesmo garoto. Mas se trata.
Continuei com minha jornada sentimental, numa espécie de reprise das
tantas transformações que sofri. Comparei essa última foto com
outra tirada em 1958, no Ginásio Adventista Campineiro (atual
Instituto Adventista São Paulo), em Hortolândia (antiga Jacuba),
quando já tinha namorada, aumentava a idade para dissimular meus
quinze anos, e buscava mostrar-me precocemente adulto, como qualquer
adolescente saudável faz.
Se a diferença entre a fotografia de 1948 e a de 1951 já era
imensa, a de sete anos antes com a da adolescência era como a da
água para o vinho. Havia um ou outro traço facial a sugerir que se
tratava da mesma pessoa, mas um estranho, que fizesse a comparação,
dificilmente diria que era o mesmo menino. Mas era.
O exercício fascinou-me e resolvi avançar no tempo. Tomei uma foto
dos meus tempos de estudante, já maduro evidentemente, com vinte e
tantos anos, pensando seriamente em casar. Modéstia a parte, na
ocasião eu era considerado um homem bastante atraente pelas
mulheres.
Quando passava, não havia aquela que não voltasse a cabeça em
minha direção para uma olhada mais atenta (tomara que minha esposa
não leia este texto). Algumas diziam que eu me parecia com o ator de
cinema norte-americano James Dean, então muito badalado e tido como
símbolo sexual. Ah, aqueles tempos! Foram, com absoluta certeza, os
mais felizes da minha vida, em todos os sentidos!
Não parei por aí, todavia. Continuei a série de comparações.
Comparei essa fotografia, tirada no Distrito de Barão Geraldo, em
Campinas, com outra, batida na mesma cidade, mas oito anos depois. A
foto foi obtida no jardim da minha casa, em 1975. Mostra-me com duas
das minhas filhas, ambas ainda bebês (uma com dois e outra com um
ano de idade), uma em cada um dos meus braços. Esta é a minha
imagem preferida de todas dos vários álbuns que tenho. Exibe um
homem maduro, de trinta dois anos de idade, confiante e seguro,
sabedor do que pretendia da vida.
Resolvi avançar mais vinte anos no tempo. A foto seguinte foi tirada
na Academia Campinense de Letras, em 1995, durante uma das várias
palestras que fiz no local, três anos após haver me tornado
“imortal”. Senti, então, o quanto fui privilegiado na vida e o
quanto tenho a agradecer, sem nada (ou muito pouco) a lamentar.
O tempo poupou-me dos desgastes naturais da idade. A imagem em
questão não sugere, nem forçando muito a barra, que o sujeito
empolgado na retórica, ali retratado, fosse, de fato, um cinquentão.
Claro que comparada com a foto de 1948, ninguém dirá que se trata
da mesmíssima pessoa. A metamorfose foi total.
Finalmente, encerrei a jornada sentimental com a fotografia tirada no
início de 2009, para ilustrar a orelha dos meus dois novos livros,
“Cronos & Narciso” e “Lance Fatal”. Comparada com a de
catorze anos antes, essa imagem mostra, sim, desgastes do tempo, mas
surpreendentemente menores do que seria de se esperar. Exibe um
sujeito que aparenta cinquenta anos (mas que então estava próximo
dos setenta), ainda com farta cabeleira, sem cabelos grisalhos e nem
rugas. Apenas os óculos denunciavam que a idade começava a cobrar
seu quinhão de desgaste e decomposição.
Mesmo sem ser hipócrita, portanto, (pelo menos acho que não sou),
tive (mas não tenho) não somente duas caras, mas uma infinidade
delas. Fico a perguntar aos meus botões: “com qual delas serei
lembrado pela posteridade (caso o seja) e se as novas gerações
serão tão generosas comigo como o tempo, até aqui, foi?”
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