Santo remédio
Pedro J. Bondaczuk
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O conceito de trabalho é muito vasto e às vezes ambíguo e,
dependendo do aspecto pelo qual é encarado, pode ser considerado um
bem, e mais do que isso, uma necessidade das pessoas, ou um
“castigo”, forma com que é encarado por muita gente. Antes que
me contestem, não estou fazendo nenhuma apologia da omissão e da
preguiça, longe disso. O que quero é lhes propor é um tema para
madura reflexão.
Quando o trabalho pode ser encarado como algo penoso e desgastante,
que não nos traz nenhuma vantagem, senão a sobrevivência física,
miserável e sem perspectiva? Quando é obrigatório, como era o dos
escravos, quer da remota antiguidade, quer dos tempos mais atuais
(não se esqueçam que a escravidão, no Brasil, terminou, apenas, em
1888), fazendo fortunas dos escravizadores que, sob qualquer aspecto
que se olhe, é de uma perversidade inominável.
Quem se valeu do trabalho alheio para enriquecer é o ladrão dos
ladrões. Roubou não apenas a força física de alguém, como, e
principalmente, seu bem mais precioso: sua liberdade (e, claro, sua
dignidade). Considero isso, pois, a vileza das vilezas, o crime dos
crimes, para o qual não deveria haver perdão. Mas houve.
Milhões de seres humanos foram selvagemente caçados como feras em
suas aldeias (muitos e muitos por pessoas de sua própria etnia,
posto que rivais tribais), notadamente na África (refiro-me à
escravidão recente), transportados como cargas em navios insalubres,
amontoados pior do que bichos, boa parte morria antes de chegar ao
destino, e era vendida como objeto, para quem queria ter riquezas,
mas não queria trabalhar. E isso era considerado normal!
Milhões de vidas eram sacrificadas nos canaviais e engenhos da
América Central e das ilhas do Caribe, e também no Brasil, o último
país do mundo a abolir a escravidão. Outro tanto foi sacrificado em
algodoais e minas de carvão do Estados Unidos e vai por aí afora.
As Américas foram construídas à custa de sangue, muito sangue.
Outro trabalho, que pode ser considerado castigo, é o exercido pela
maioria dos trabalhadores em todo o mundo, não raro opressivo,
monótono ou perigoso e, sobretudo, remunerado muito aquém do que
vale. Sempre considerei isso como escravidão remunerada. E isso é
considerado normal! Anormal é quem se opõe a esse procedimento e é,
invariavelmente, tachado de subversivo, encrenqueiro, “criminoso”
e outras tantas designações (escolham a de sua preferência).
São vidas que estão em jogo e, como todos sabemos, esta nós só
temos uma, que não comporta, pois, reprises. “As coisas já foram
piores neste aspecto”, dirão vocês. Concordo. Tanto que mencionei
a indecência e crueldade da escravidão.
“Então você se opõe ao trabalho?”, perguntarão os que gostam
de distorcer palavras para defender o indefensável. “Sem ele, o
que seria do mundo? Não haverá cidades, países, economias,
civilização, nada. Ainda estaríamos nas cavernas, como bichos,
caçando com as próprias mãos, ou sendo caçados por predadores”,
acrescentariam à guisa de explicação. Concordo. Não defendo, de
forma alguma, a inércia, a preguiça e muito menos a omissão.
O que defendo é a dignidade do trabalho e, sobretudo, do
trabalhador. É a remuneração justa e condições decentes de vida,
coisa que não vejo em lugar algum do mundo. E sequer preciso citar
exemplos. Olhem ao seu redor, mas com olhar aguçado e crítico e
concluam se o que existe sequer se aproxima remotamente do ideal.
Anatole France, o premiadíssimo Prêmio Nobel de Literatura francês,
escreveu sobre o tema. Defendeu o trabalho, sim, e apontou,
sobretudo, sua necessidade, não apenas individual, como coletiva. E
eu não seria maluco e nem burro de contestá-lo.
Constatou, num memorável texto: “O trabalho é bom para o homem.
Distrai-o da própria vida, desvia-o da visão assustadora de si
mesmo; impede-o de olhar esse outro que é ele e que lhe torna a
solidão horrível. É um santo remédio para a ética e a estética.
O trabalho tem mais isso de excelente: distrai a nossa vaidade,
engana a nossa falta de poder e faz-nos sentir a esperança de um bom
evento”.
Será, porém, que Anatole France (socialista ferrenho) defendia o
status quo, tanto do seu tempo, quanto do nosso? Será que era
defensor da escravidão, quer a explícita e escrachada, quer a
remunerada (via de regra pessimamente, por sinal)? Claro que não!
Defendia o conceito, mas não a forma de sua aplicação. Defendia o
trabalho prazeroso, útil, bem pago, aquele que nos enche de
satisfação e orgulho face ao seu resultado, de preferência o
voluntário e individual.
Este trabalho eu adoro! Sou inveterado “workaholic”, ou seja, sou
viciado nele. Não consigo passar sem ele e não por causa do meu
sustento pessoal e o da minha família, embora isso também conte, e
muito. Mas, como observou Anatole France, “por desviar-me da visão
assustadora de mim mesmo, impedir-me de olhar esse outro que sou eu e
que me torna a solidão horrível”. Gosto, exerço e defendo esse
que é “um santo remédio para a ética e a estética”.
Sei que muitos (provavelmente a maioria) não concordarão com minhas
colocações. Paciência! Que trabalhem, trabalhem e trabalhem, mas
com prazer e dignidade. Afinal, como Anatole France arrematou esse
excelente texto: “O trabalho tem mais isso de excelente: distrai a
nossa vaidade, engana a nossa falta de poder e faz-nos sentir a
esperança de um bom evento”.
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