Espécie
em extinção?
Pedro J. Bondaczuk
Dia desses, iniciei um dos meus tweets no twitter com esta
exclamação: “É duro ser escritor no Brasil!”. Sei que as
dificuldades que nós, que exercemos esta até um tanto cabalística
atividade, temos não se restringem ao nosso país. Mas resido aqui,
não tenho a mais remota intenção de emigrar e por isso preocupo-me
com meu “lar planetário”, com o canto do mundo que escolhi para
viver, com o meu quintal. Outros que se preocupem com os seus. Mas,
uns mais e outros menos, todos os escritores enfrentam várias
barreiras que tornam a atividade pouco (ou nada) atrativa.
Mas no meu caso, qual o motivo desse desabafo, justo eu que sou
obcecado pelo texto e faço da literatura não um meio de
subsistência (até porque, se o fizesse, seria o indigente dos
indigentes e teria que mendigar até o pão nosso de cada dia), mas
uma das razões de viver? É porque escrever e publicar livros no
Brasil é como falar sozinho pela rua, como plantar bananeira nu em
pêlo em plena Praça da Sé ou como pregar no deserto, sob um sol
escaldante de mais de 50 graus centígrados. Ou seja, manifestação
de insanidade. E não sou o primeiro e nem o único a sentir, e
expressar, esse desamparo.
Há alguns anos, li, numa entrevista de Lygia Fagundes Telles –
Consagradíssima escritora, ganhadora de vários prêmios
internacionais e que, possivelmente, algum dia, ainda vai conquistar
o Prêmio Nobel de Literatura – esta declaração, que não difere
em nada da minha em sua essência, embora tenha sido exposta com mais
graça e beleza: “Digo sempre que há três espécies em extinção:
o índio, a árvore e o escritor, esse marginalizado. É duro ser
escritor num país com um índice tão alto de analfabetismo. E ainda
por cima censurado”. Destaque-se que na ocasião em que Lygia fez
esse desabafo, vivíamos os malfadados “anos de chumbo” da
ditadura militar e os censores nos faziam cerco para impedir que nos
expressássemos com liberdade.
Essa escritora carismática é muito especial para mim. Além de
apreciar seus livros, todos eles – e, ademais, “rabiscados”
(todos os volumes que me pertencem e que integram minha biblioteca),
pois tenho o hábito de grifar à caneta os trechos que me agradem e
que fatalmente acabo por comentar algum dia – tive o privilégio e
a honra de perder para ela o primeiro lugar num concurso literário
no Paraná, muito famoso nos anos 60, na edição de 1967, que
revelou para o estrelato uma infinidade de escritores novos, até
então no ostracismo. Não, leitor amigo, não sou masoquista. Não
gosto de perder e nem de sofrer. Um ano antes, em 1966, vejam só, eu
já havia perdido para ninguém menos que o magnífico Dalton
Trevisan, o famoso “vampiro de Curitiba”. Como vêem, minhas
derrotas são, pelo menos, “qualificadas”.
Vocês talvez estranhem eu reverenciar quem me derrotou. Mas faz todo
o sentido do mundo. Só o fato de concorrer a um prêmio literário
de prestígio, com “feras” desse porte, já me engrandeceu e fez
com que eu subisse de patamar. Ademais, aprendi muito com ambos,
notadamente com Lygia Fagundes Telles, de quem tenho não somente
todos os livros que consegui encontrar, mas artigos de jornais e
revistas e até uma cópia do seu discurso de posse na Academia
Paulista de Letras. Mas, voltando ao tema, nós, escritores, somos,
de fato, espécie em extinção, os últimos “heróis da
resistência”.
Uma das maiores invenções do homem, que nós, pessoas modernas, não
valorizamos devidamente, dada a facilidade de obtenção, é o livro.
Ele permite o acúmulo de sabedoria, de experiências e de emoções
de indivíduos especiais e possibilita o acesso a elas de gerações
e mais gerações, séculos (às vezes milênios) afora, após a
morte destes. Jorge Luís Borges observou, com argúcia, a esse
respeito: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é,
sem dúvida, o livro. Os demais são extensões do seu corpo. O
microscópio, o telescópio são extensões de sua vista; o telefone
é extensão da voz; também temos o arado e a espada, extensões do
seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da
memória e da imaginação”.
Muito bem, mas essa invenção assombrosa depende de um personagem
imprescindível, nem sempre devidamente valorizado, para existir.
Claro que me refiro ao escritor. Sem ele, óbvio, não existiriam e
não existirão livros. Por mais que a indústria editorial o
considere personagem, digamos, secundário, não tem como
descartá-lo. Não há livro sem textos, mesmo que estes se
restrinjam a reles legendas de fotografias (pois há como fazer
volumes só com fotos) ou de imagens de reprodução de quadros
famosos. Mas sempre algumas palavras têm que ter. Se não houver
nenhuma... Para haver livros, obviamente, há que existir texto e,
por extensão, quem o escreva, o escritor. É verdade que muita gente
que não é do ramo se aventura a publicar suas garatujas, sempre às
próprias expensas, já que os editores não são burros de arriscar
dinheiro bom em cima de produto ruim. Mas estes... bem, são uma
outra história.
Tento ser (e agir) como Ernest Hemmingway recomendou que a gente
fosse e agisse, neste texto, que pincei alhures: “Para o verdadeiro
escritor, cada livro deve ser um novo início, no qual tenta alguma
coisa que está além da realização. Deve sempre tentar o que nunca
foi tentado ou que outros tentaram e não conseguiram. É porque
tivemos tão grandes escritores no passado que um escritor é
impelido para muito além de onde pode ir, onde ninguém pode
ajudá-lo”. Tento ser original à minha maneira, mas sem abrir mão
da principal característica do meu estilo (não sei se boa ou ruim),
que considero rara virtude: a simplicidade. Tenho ojeriza por textos
empolados e creio que meus leitores idem. Se não tivessem... não me
prestigiariam com sua fidelidade.
Emile Zola definiu a literatura como “uma fatia de vida vista
através de um temperamento”. É uma atividade que encerra em si um
paradoxo. Para ser concebida, exige rigorosa solidão de quem a
produz. Um escritor não elabora seus textos numa avenida, ou estádio
de futebol, em meio a burburinhos e algaravias de multidões.
Isola-se, concentra-se, prospecta idéias e sentimentos nas
profundezas abissais do subconsciente e de lá extrai o precioso
“petróleo”, que tenderá a se tornar combustível de inspiração
e motivação para muitas vidas. Mas nunca sabe se foi bem-sucedido
em sua tarefa. Até porque, para ele, o parâmetro do sucesso não é
a quantidade de livros vendidos (facílima de apurar), importante
para as livrarias e os editores, mas o tanto de volumes realmente
lidos (impossível de se conhecer). Apenas uma, uma única e
solitária figura lhe importa de fato, e quanto maior for sua
quantidade, maior será seu sucesso. Quem? O leitor, claro!
É o único juiz cujo veredito o escritor acata e ao qual se submete.
Fora dele... Lima Barreto, que não teve a felicidade de gozar, em
vida, o sucesso que seu talento justificou que gozasse e que só
passou a ter depois de morto, tinha essa consciência. Tanto que
escreveu: “Quem faz as obras-primas não somos nós os autores e
nem os críticos, nem os amigos dos autores: são os leitores e,
sobretudo, o tempo”. Com esta declaração, concluo minha reflexão
de hoje. O que poderia acrescentar a uma constatação tão lúcida,
óbvia e verdadeira? Nada! Rigorosamente nada!
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