Tuesday, August 29, 2017

O Vieira político



Pedro J. Bondaczuk


Os sermões do padre Antonio Vieira, além de luzirem pelas extraordinárias mensagens cristãs que contêm, são versáteis manuais de redação e estilo da língua portuguesa, mesmo passados mais de três séculos da sua produção. Alguns dos pronunciamentos do combativo, piedoso e eclético sacerdote são antológicos, tanto pelos temas abordados, quanto pela linguagem simples, mas elegante e até poética e musical, com que foram escritos. Lendo-os em voz alta é que se consegue perceber toda a graça e a beleza do nosso idioma, quando usado com bom senso, inteligência e absoluta correção.

Todavia, poucas pessoas, críticos literários ou historiadores, ressaltaram um outro ângulo, quase nunca lembrado, das pregações desse inteligente e combativo sacerdote: o político. Vieira ressalta, em seus sermões, por exemplo, a defesa intransigente e sistemática dos direitos humanos dos indígenas brasileiros, numa época em que ninguém cogitava desse tipo de assunto, quando os habitantes primitivos do Brasil eram tidos como seres "menos do que gente". Eram considerados animais "semirracionais", pouco acima dos gorilas talvez, incapazes de gerir seus próprios destinos.

Recorde-se que nesse período os reis da maioria dos países da Europa detinham poder absoluto. Ostentavam o que se entendia como "direito divino" de reinar e a maior parte agia como déspotas cínicos e arrogantes, não raro dissolutos, senhores absolutos da vida e da morte de seus súditos. Não se sentiam na obrigação de prestar contas dos seus atos a quem quer que fosse, respaldados, é claro, por respeitáveis forças militares, prontas a punir qualquer ato interpretado como de rebeldia.

Vieira, no entanto, não escapou impune por suas ideias, liberais demais para a época e lugar. Pagou caro pela ousadia de defender os "indefensáveis". Seus sermões de cunho político, denunciando, corajosamente, violências e desmandos contra as populações indígenas, incomodavam, e muito, os poderosos proprietários de terras do Maranhão. Estes julgavam-se acima da lei e viam nos silvícolas nada mais do que mera mão de obra farta e gratuita, da qual poderiam se apossar quando bem entendessem.

As queixas contra o corajoso sacerdote jesuíta avolumavam-se. Os poderosos latifundiários maranhenses, porém, não ousavam hostilizar abertamente o padre. Temiam abrir guerra, senão com a Igreja, pelo menos com a poderosa Companhia de Jesus. Por isso, encaminharam suas reclamações à corte, em Lisboa, o que valeu, no final das contas, a expulsão de Vieira do Brasil. Pobres tempos! Pobre gente! Indigência de espírito!

Antonio Vieira, ressalte-se, era o pregador predileto do rei Dom João IV, que apreciava a forma elegante e repleta de imagens poéticas dos seus sermões, com que transmitia as sublimes mensagens do Evangelho, envolvendo e comovendo os que tinham o privilégio de os ouvir. Tanto isto é verdade, que a maior parte deles foi proferida não em alguma igrejinha qualquer, dos arrabaldes da capital, ou de alguma distante e perdida cidade do interior de Portugal, mas na própria capela real em Lisboa, que congregava, além do monarca português, uma plateia ilustre e seleta, a elite do poder secular e religioso do reino.

Uma das prédicas mais inspiradas do padre Vieira, primor de lógica, inteligência e verdade e uma aula de estilo, de ética e de lógica, ainda é atualíssima nos dias de hoje (como, aliás, a maioria das mensagens que nos legou). Aborda os interesses (raramente legítimos) que cercam a maioria das amizades, quase sempre falsas, ocasionais e interesseiras. Felizmente, como em tudo na vida, há exceções. Trata-se do "Sermão do Dia de São Roque".

Para ilustrar o que diz, Vieira cita a experiência de Jó, relatada no Velho Testamento. Enquanto o patriarca dispunha de grande riqueza e poder, e sua mesa era farta, e a bolsa generosa, não lhe faltavam comensais. O círculo de amigos era imenso e crescente, com todos jurando fidelidade irrestrita.

Contudo quando, para testar sua fé, Deus permitiu que perdesse tudo o que tinha (fortuna, família, prestígio e até a saúde), lhe restando apenas a vida, todos os que freqüentavam a sua casa, sem nenhuma exceção, o abandonaram. Não contentes com o mero afastamento, fizeram do seu infortúnio motivo de chacota. A paciência de Jó e sua inabalável fé, porém, prevaleceram. E o patriarca foi fartamente abençoado, por em momento algum perder a confiança em Deus.

Não tardou para que o patriarca recuperasse os bens perdidos e os multiplicasse. Constituiu nova família, a saúde foi restaurada e seu prestígio cresceu muito mais do que antes. E os "amigos" infiéis, que o abandonaram na desdita, retornaram rapidinho, e em massa, cada qual com uma desculpa na ponta da língua para justificar a infidelidade.

Vieira, aliás, experimentou coisa muito parecida em sua vida. Seu prestígio oscilou como gangorra e os bajuladores e detratores acompanharam essas subidas e descidas, aproximando-se ou afastando-se dele, conforme as conveniências. Até parece, portanto, que ele acabou de escrever há apenas algumas horas esse sermão maravilhoso, tamanha sua atualidade. Essa é a arma dos competentes e dos gênios: a capacidade de "radiografar", com sensibilidade e clareza, a alma humana.


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