O Vieira político
Pedro J. Bondaczuk
Os
sermões do padre Antonio Vieira, além de luzirem pelas
extraordinárias mensagens cristãs que contêm, são versáteis
manuais de redação e estilo da língua portuguesa, mesmo passados
mais de três séculos da sua produção. Alguns dos pronunciamentos
do combativo, piedoso e eclético sacerdote são antológicos, tanto
pelos temas abordados, quanto pela linguagem simples, mas elegante e
até poética e musical, com que foram escritos. Lendo-os em voz alta
é que se consegue perceber toda a graça e a beleza do nosso idioma,
quando usado com bom senso, inteligência e absoluta correção.
Todavia,
poucas pessoas, críticos literários ou historiadores, ressaltaram
um outro ângulo, quase nunca lembrado, das pregações desse
inteligente e combativo sacerdote: o político. Vieira ressalta, em
seus sermões, por exemplo, a defesa intransigente e sistemática dos
direitos humanos dos indígenas brasileiros, numa época em que
ninguém cogitava desse tipo de assunto, quando os habitantes
primitivos do Brasil eram tidos como seres "menos do que gente".
Eram considerados animais "semirracionais", pouco acima dos
gorilas talvez, incapazes de gerir seus próprios destinos.
Recorde-se
que nesse período os reis da maioria dos países da Europa detinham
poder absoluto. Ostentavam o que se entendia como "direito
divino" de reinar e a maior parte agia como déspotas cínicos e
arrogantes, não raro dissolutos, senhores absolutos da vida e da
morte de seus súditos. Não se sentiam na obrigação de prestar
contas dos seus atos a quem quer que fosse, respaldados, é claro,
por respeitáveis forças militares, prontas a punir qualquer ato
interpretado como de rebeldia.
Vieira,
no entanto, não escapou impune por suas ideias, liberais demais para
a época e lugar. Pagou caro pela ousadia de defender os
"indefensáveis". Seus sermões de cunho político,
denunciando, corajosamente, violências e desmandos contra as
populações indígenas, incomodavam, e muito, os poderosos
proprietários de terras do Maranhão. Estes julgavam-se acima da lei
e viam nos silvícolas nada mais do que mera mão de obra farta e
gratuita, da qual poderiam se apossar quando bem entendessem.
As
queixas contra o corajoso sacerdote jesuíta avolumavam-se. Os
poderosos latifundiários maranhenses, porém, não ousavam
hostilizar abertamente o padre. Temiam abrir guerra, senão com a
Igreja, pelo menos com a poderosa Companhia de Jesus. Por isso,
encaminharam suas reclamações à corte, em Lisboa, o que valeu, no
final das contas, a expulsão de Vieira do Brasil. Pobres tempos!
Pobre gente! Indigência de espírito!
Antonio
Vieira, ressalte-se, era o pregador predileto do rei Dom João IV,
que apreciava a forma elegante e repleta de imagens poéticas dos
seus sermões, com que transmitia as sublimes mensagens do Evangelho,
envolvendo e comovendo os que tinham o privilégio de os ouvir. Tanto
isto é verdade, que a maior parte deles foi proferida não em alguma
igrejinha qualquer, dos arrabaldes da capital, ou de alguma distante
e perdida cidade do interior de Portugal, mas na própria capela real
em Lisboa, que congregava, além do monarca português, uma plateia
ilustre e seleta, a elite do poder secular e religioso do reino.
Uma
das prédicas mais inspiradas do padre Vieira, primor de lógica,
inteligência e verdade e uma aula de estilo, de ética e de lógica,
ainda é atualíssima nos dias de hoje (como, aliás, a maioria das
mensagens que nos legou). Aborda os interesses (raramente legítimos)
que cercam a maioria das amizades, quase sempre falsas, ocasionais e
interesseiras. Felizmente, como em tudo na vida, há exceções.
Trata-se do "Sermão do Dia de São Roque".
Para
ilustrar o que diz, Vieira cita a experiência de Jó, relatada no
Velho Testamento. Enquanto o patriarca dispunha de grande riqueza e
poder, e sua mesa era farta, e a bolsa generosa, não lhe faltavam
comensais. O círculo de amigos era imenso e crescente, com todos
jurando fidelidade irrestrita.
Contudo
quando, para testar sua fé, Deus permitiu que perdesse tudo o que
tinha (fortuna, família, prestígio e até a saúde), lhe restando
apenas a vida, todos os que freqüentavam a sua casa, sem nenhuma
exceção, o abandonaram. Não contentes com o mero afastamento,
fizeram do seu infortúnio motivo de chacota. A paciência de Jó e
sua inabalável fé, porém, prevaleceram. E o patriarca foi
fartamente abençoado, por em momento algum perder a confiança em
Deus.
Não
tardou para que o patriarca recuperasse os bens perdidos e os
multiplicasse. Constituiu nova família, a saúde foi restaurada e
seu prestígio cresceu muito mais do que antes. E os "amigos"
infiéis, que o abandonaram na desdita, retornaram rapidinho, e em
massa, cada qual com uma desculpa na ponta da língua para justificar
a infidelidade.
Vieira,
aliás, experimentou coisa muito parecida em sua vida. Seu prestígio
oscilou como gangorra e os bajuladores e detratores acompanharam
essas subidas e descidas, aproximando-se ou afastando-se dele,
conforme as conveniências. Até parece, portanto, que ele acabou de
escrever há apenas algumas horas esse sermão maravilhoso, tamanha
sua atualidade. Essa é a arma dos competentes e dos gênios: a
capacidade de "radiografar", com sensibilidade e clareza, a
alma humana.
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