Friday, August 04, 2017

Líder russo coloca carreira política em jogo

Pedro J. Bondaczuk

A República da Rússia é um retrato, em tamanho pouco menor, das contradições que ameaçaram a sobrevivência da União Soviética. Sua população, ao contrário do que pensam os menos informados que se arriscam a opinar sobre temas com que não estão familiarizados, não tem homogeneidade étnica. Pelo contrário, a maioria das 101 etnias que compunham essa “colcha de retalhos” urdida pelos sonhos imperialistas dos czares, vive em seu território. Tem a mesma divisão administrativa que a URSS.

Enquanto a federação era composta por quinze repúblicas – a nova, provavelmente, terá somente oito – a Rússia tem as chamadas “áreas autônomas”. Nelas, os movimentos nacionalistas provavelmente são até mais intensos e radicais do que, por exemplo, na Geórgia, na Armênia ou na Moldávia. Mas são pouco noticiados. Portanto, o presidente Bóris Yeltsin terá à sua frente os mesmos problemas enfrentados por Mikhail Gorbachev para preservar um mínimo de união, que evite que os vários grupos nacionais ponham para fora seus mútuos ódios seculares e se engalfinhem, num caos incontrolável.

A pergunta que fica é se ele terá a mesma competência do seu padrinho político, posteriormente rival, e agora, ao que se diz, novamente aliado. Restam mais dúvidas do que certezas a esse respeito. A estratégia que o dirigente russo quer adotar é a mesma de que o líder do Cremlin lançou mão, até as vésperas do frustrado golpe de 19 de agosto passado, sem sucesso. Ou seja, Yeltsin pretende ter o controle absoluto do poder, insinuando com a possibilidade de, além da presidência, acumular também as funções de primeiro-ministro.

Com Gorbachev, político bastante maleável, a ponto de ser considerado por inúmeros gurus ocidentais como tíbio e inseguro – é fácil, à distância, apontar fraquezas e imperfeições nos outros, mesmo que elas não existam – isto não deu certo. Dará com o presidente russo? É um tanto duvidoso. O plano econômico que ele apresentou durante a semana, por exemplo, não resiste a uma análise mais cuidadosa. É claro que o Ocidente o aplaudiu, pois embora haja sido apregoado o fim da guerra fria, a linguagem e os cacoetes desse período persistem. É ostensivo o tom revanchista, triunfalista, utilizado pot determinados setores políticos ao se referirem à outrora superpotência conhecida como União Soviética.

Yeltsin, desde 1988, quando rompeu com Gorbachev, passou a ser encarado como “menino rebelde”, como aquele que servia de cunha para romper o monolitismo soviético – que o tempo se encarregou de mostrar que não era tão sólido assim – o que era do interesse dos adversários de Moscou. Ao comandar a resistência ao golpe de agosto passado, seu prestígio, interno e externo, foi às nuvens. Mas o presidente russo não teve humildade – e mais do que isso, habilidade política – para administrar bem essa popularidade. Cometeu desmandos desnecessários, que somente deslustraram sua imagem. Sem se dar conta, tomou atitudes ditatoriais idênticas à da ditadura que dizia combater. Humilhou Gorbachev publicamente, diante das câmeras de televisão, numa solenidade realizada no Parlamento da Rússia, em 24 de agosto.

Enquanto a população podia usar o líder do Cremlin como bode expiatório para suas agruras, sem se deter para analisar que suas dificuldades eram consequências exatamente do regime que ele procurava reformar, Yeltsin pode posar de herói. A escassez de alimentos, a escalada da inflação, a ineficiência do parque produtivo, enfim, o colapso total e absoluto da economia, eram invariavelmente atribuídos a Gorbachev. Agora isto não é mais possível. Cada República está cuidando da própria administração, mas os resultados são os mesmos, sendo mais decepcionantes de quando vigorava o sistema centralizado.

Não tardará muito para que as respectivas populações, quando não for mais possível tapear tanta gente com a cortina fr fumaça nacionalistoide, comecem a cobrar eficiência administrativa. Aí sim será possível saber quem é quem, mas poderá ser muito tarde.


(Artigo publicado na editoria Internacional do Correio Popular em 2 de novembro de 1991).

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