O maior mendigo
Por
Pedro
J. Bondaczuk
O homem, quando se guia só
pelos instintos e se deixa levar por seu latente egoísmo, é, de
todos os animais, o mais feroz e o mais cruel. Não fosse assim, não
haveria extremos, em termos de posses. Não existiriam fortunas
pessoais absurdas, de tão grandes que são, maiores do que a de
países inteiros e, no outro extremo, pessoas sem teto, esfarrapadas,
sujas e mendigando um reles prato de comida ou, na pior das
hipóteses, uma dose de bebida alcoólica para tapear uma fome
crônica e insaciável. Há, todavia, milhões destas criaturas,
mundo afora, encaradas com indiferença tanto pelas autoridades, às
quais compete lhes dar assistência e proteção, quanto pela
população.
Numericamente, há muito mais
carentes, que não têm sequer certeza de obter o almoço de cada dia
(por frugal que seja) do que os que não precisam se preocupar com as
incertezas da existência. E a cada dia, novos contingentes vêm se
juntar a essa multidão de zumbis, de indivíduos sem esperanças e
sem futuro, carentes de tudo e de todos, que buscam a mera
sobrevivência física, assim mesmo na base do puro instinto. O homem
é, pois, ou não é o mais feroz, o mais cruel e o mais insensível
dos animais?
Milhões, mundo afora, têm
apenas as ruas das cidades como lar. Indigentes não faltam,
portanto, cada qual mais desvalido do que o outro numa surreal
competição pelo troféu de miserável dos miseráveis. E, no
entanto, essas pessoas são dotadas de inteligência, sentimentos,
sonhos e esperanças. Ou, pelo menos, um dia foram. São, como nós,
feitas “à imagem e semelhança de Deus”. Comete, pois,
sacrilégio quem, por ação ou omissão (não importa) permite que
alguém se degrade a esse ponto e permaneça em degradação.
Onde estão os que apregoam
por aí o desejável (ou meramente hipotético?) “reino do céu”,
mas que se omitem diante das necessidades mínimas, porém inadiáveis
e prementes, de tantos dos seus semelhantes? Onde o senso, já não
digo de justiça (pois deste o homem não pode se vangloriar de ter,
pois não tem), mas de caridade e de fraternidade, pregado há mais
de dois mil anos por Jesus Cristo (traído e morto por aqueles a que
pretendia despertar a voz da razão)? O homem é, pois, ou não é o
mais feroz, o mais cruel e o mais insensível dos animais?
Qual seria o maior dos
miseráveis, o desprovido de absolutamente tudo, principalmente da
motivação para sobreviver? Conheci, anos atrás, em Barão Geraldo,
uma pessoa que se estivesse viva seria séria candidata a esse
deprimente título. Nunca a vi sóbria uma vez que fosse.
Perambulava, trôpega e anestesiada, pelos bares do distrito a
implorar por uma dose de cachaça e algum salgadinho para matar a
fome. Nunca deixava de conseguir. Sempre aparecia alguém que, para
se livrar do seu assédio, lhe pagava a tal bebida, se julgando,
certamente, por isso, o suprassumo da generosidade.
Vários moradores davam-lhe
restos de comida, como se alimentassem algum cão vadio, e assim
nosso personagem ia sobrevivendo. Dormia onde suas pernas o levassem.
Às vezes, em casas em construção, outras, na soleira dos
estabelecimentos comerciais, de onde era, invariavelmente, enxotado,
como animal pestilento, pelo dono, quando, de manhã, abria as portas
para o público. Cheirava mal à distância. Pudera! Há tempos que
não sabia o que era um banho.
Não sei que fim esse
indigente levou. O fato é que, lá um belo dia, ninguém mais o viu.
Certamente, morreu à míngua e foi sepultado, anonimamente, em
alguma cova rasa sem identificação ou teve o corpo doado à
Faculdade de Medicina, quem sabe. Soube, depois, que esse farrapo
humano havia sido famoso jogador de futebol (reservo-me o direito de
não o identificar, para preservar, pelo menos, sua memória).
Ninguém jamais soube explicar as razões de uma queda tão grande e
abrupta, para que chegasse a esse ponto.
Onde estavam os seus parentes?
Onde os dirigentes dos clubes em que jogou? Onde os que se
confessavam seus “amigos” e os tantos que se diziam seus
admiradores? Por que deixaram esse ser humano, “à imagem e
semelhança de Deus”, chegar a tal ponto de degradação? Onde as
autoridades que não o recolheram a uma instituição do Estado, para
lhe assegurar um mínimo de dignidade? Onde os líderes religiosos?
Escrevo estas linhas rilhando
os dentes, decepcionado e amargurado com a minha, com a nossa
condição humana. E a trajetória desse indigente, infelizmente, não
é nenhuma exceção, mas a regra. O homem é, pois, ou não é o
mais feroz, o mais cruel e o mais insensível dos animais?
Volto à pergunta: qual seria
o maior dos miseráveis? É o poeta Rabindranath Tagore que responde:
“O homem que precisa mendigar amor é o mais mísero de todos os
mendigos”. Ocorre que todos nós praticamos este ato de
mendicância. “Compramos” afeto e raramente o conquistamos.
Reflita sobre essa afirmação e responda: Tagore tem, ou não,
razão? Não seríamos todos nós, incapazes de nos doar,
minimamente, ao próximo, sem que essa autodoação envolva algum
interesse, os mais míseros dos mendigos? Desconfio que sim!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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