Lembranças
do garotinho que um dia fui
Pedro
J. Bondaczuk
A
memória, não raro, atua sem muita lógica. Guarda fatos
aparentemente banais, corriqueiros e nada decisivos em termos de
futuro e descarta acontecimentos que de fato foram importantes em
nossa vida. Sei que estou sendo repetitivo a esse propósito, mas
reiterarei isso sempre que escrever a respeito, por se tratar de algo
cuja razão nunca consegui entender. A lembrança mais antiga que
tenho remonta a quando eu tinha, somente, dois anos de idade. Há,
portanto, mais de setenta anos. É uma recordação
compreensivelmente confusa, diáfana, meio que apagada, sem contornos
definidos e muito menos detalhes, o que é, convenhamos,
compreensível. Recordo-me de um dia especial, não sei qual e nem de
quando, cujo cenário era um vasto pátio cimentado, que soube depois
que era usado para secar café. Nele eu corria, leve e solto,
chutando, com entusiasmo, uma laranja e gritando gol!!!
Não
sei, repito, onde ficava este “campo de futebol” da minha
memória. Deduzo, no entanto, que não era na minha Horizontina
natal. Nem poderia ser. Afinal, a cidade em que nasci não era e nem
é região cafeeira. E por que tenho essa lembrança específica, sem
a menor importância em minha vida, e não tenho nenhuma outra de
então que realmente importe? Sim, por que? Não vejo a menor lógica
nessa recordação. Mas é do que me lembro dos meus verdes e
esperançosos dois anos de idade. O curioso é que eu nunca vira, em
lugar algum, nenhuma partida de futebol. Nem poderia! Era o ano de
1945, quando a televisão sequer chegara ao Brasil. Além do que, eu
nunca estivera em um estádio e nem mesmo em um tosco campinho de
várzea. No entanto… já tinha noção de gol. Como? Sei lá!!!
Isso nunca me ficou claro. Mas a lembrança é esta: eu chutando uma
laranja e gritando, a plenos pulmões: GOL!!!!
O
período de infância que mais se fixou na minha memória, óbvio,
não foi este. Foi o de quando eu tinha cinco anos. São tantas as
lembranças dessa época que dariam, sem nenhum exagero, para
preencher todo um livro, dos mais alentados e volumosos, caso me
propusesse a relatá-las. O curioso é que não se trata de nada que
tenha influenciado, de fato, minha vida e determinado o que sou e o
que penso. São recordações até banais, corriqueiras, sem
importância (será?) mas que envolvem todos os meus sentidos.
Fechando os olhos, consigo visualizar os cenários, alguns com
bastante detalhes. E mais, recordo-me do canto de pássaros, do
zumbir de abelhas, do sussurro do vento e de outros tantos sons.
Sinto o perfume da flor de laranjeira (na verdade, das flores de um
pé de bergamota que ficava ao lado de uma escada de madeira, bem
próximo à grade de proteção que fazia as vezes de corrimão), um
aroma que nunca mais pude sentir nestes mais de setenta anos. Sinto a
fluidez acariciante de um punhado de areia fininha que escapava por
entre os meus dedos quando, brincando, enchia a mão com ela. Como se
vê, banalidades, trivialidades, coisas sem importância. Todavia, é
o que a memória registrou e que recordo com carinho, com ternura e
com saudade.
Claro
que não é somente isso de que me lembro daquele período de tantos
sonhos que vivi em minha Horizontina natal. Lembro-me, por exemplo,
dos meus pais (óbvio), da minha irmã então recém-nascida, dos
meus avós paternos, dos tios e primos, e todos em plena flor da
idade. A vida encarregou-se de me separar dessas pessoas tão
queridas – a maioria para sempre, ou por já terem falecido ou por
viverem em outras cidades (algumas, em outros países), com ínfimas
chances de reencontro. Uma das lembranças recorrentes que tenho
desse período é a do meu avô, “trabalhando” madeira, em sua
oficina de carpintaria. Não era sua profissão. Tratava-se de um
hobby dele. Essa figura tão querida contava com uma habilidade
incomum para fabricar móveis, mas não para vender e sim para uso da
própria família. E fazia isso por puro gosto e com inusitada
habilidade.
Com
quanto gosto e saudade me lembro do meu avô aplainando madeiras,
lixando-as, serrando-as, envernizando-as e tudo com ferramentas
toscas, já que não dispunha nem mesmo de serra elétrica (e nem
poderia dispor, pois em sua propriedade não havia, então, sequer
eletricidade). Na verdade não contava com nenhuma dessas tantas
máquinas, hoje corriqueiras nas mais humildes oficinas de
marcenaria. Tudo o que fazia (e fazia de tudo) era na base da
puríssima habilidade de habilíssimo artesão. Era um artista da
madeira!! Lembro-me, particularmente, quando meu avô usava alguma
plaina (tinha-as de vários tamanhos) para desbastar as peças que
elaborava. Recordo-me, sobretudo, das tiras que delas saíam,
parecendo serpentinas, as quais eu adorava manipular. E os formões
que ele utilizava para desbastar peças, com uma habilidade de
artista pintando uma tela, dando-lhes formas absolutamente
proporcionais e perfeitas!!! E o cheiro de madeira!!! Meu Deus, que
delícia que era!!! É outro perfume que nunca mais me saiu da
memória olfativa!
Há
outras tantas lembranças desse período que a memória registrou e
que me veem cada vez com maior frequência à mente. São incríveis
poemas de intensa beleza, que nem precisam ser escritos para me
encantar (e que nem sei se conseguiria descrever, mesmo com relativa
perícia). E o que dizer da imagem dos trigais maduros, de se
perderem de vista, ondulando ao vento quando próximos da época de
colheita?! E do lago, em cuja margem eu gostava de brincar, atirando
pedras na água, para ver os círculos concêntricos que ela formava!
E o riozinho que passava perto de nossa casa, onde nos banhávamos,
minha mãe lavava roupa e meu pai pescava a mistura do jantar?! E a
parelha de bois, batizados de Gaúcho e Gigante, presente de meu avô
no meu quarto aniversário e que ajudavam meus pais nas rudes tarefas
da propriedade rural?! Bem, a rigor, nem mesmo posso dizer que se
tratam de lembranças banais, como afoitamente afirmei acima, de
coisas que não influenciaram em minha vida. Por que? Porque
influenciaram sim, e muito. Afinal, fizeram de mim poeta para o resto
da vida! E isso não tem importância?!
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