Sunday, August 27, 2017

Do paraíso da democracia ao caudilhismo

Pedro J. Bondaczuk

Para quem nunca conheceu o Paraíso, o Inferno até que é um bom lugar. Mas para quem foi expulso dele, após gozar das suas delícias, qualquer outro lugar, por melhor que seja, acaba equiparado às plagas infernais. A comparação acima cabe como uma luva aos nossos vizinhos da República Oriental del Uruguay, considerado, em passado não muito remoto, como o primeiro Estado de assistência social da América Latina, cantado, em prosa e verso, como a “Suíça da América do Sul”.

Desde o início do século, os uruguaios obtiveram extraordinário desenvolvimento, atípico em termos latino-americanos. Com o notável progresso, vieram amplas leis trabalhistas, avançadíssimas mesmo quando comparadas às da Europa Ocidental, com planos de aposentadoria e habitação ara os pobres e os idosos, assistência à maternidade e infância, educação gratuita e amparo aos deficientes.

Mas as conquistas do Uruguai não pararam por aí. Acompanhando os notáveis avanços econômicos e sociais, o país teve um inédito no continente, de estabilidade social, criando, para gerir os próprios destinos, um sistema colegiado, do tipo suíço, composto de nove homens, chamado de “Conselho Executivo de Coalizão”, eleito para um período de quatro anos. E, pasmem senhores, numa América Latina onde dificilmente algum regime sobrevive a quatro anos em média, onde o individualismo, a corrupção e a ambição pessoal falam mais alto do que qualquer sentimento de nacionalidade ou de dedicação à causa pública, esse processo de gestão sobreviveu por 14 anos! Isso mesmo, de 1952 a 1966, quando algum tresloucado teve a infeliz ideia de restituir o país ao sistema presidencialista.

A partir daí, começou a derrocada uruguaia. A maravilhosa experiência desse povo, que assombrava o mundo, foi levada de roldão pelos interesses escusos de vários grupos de caráter econômico e estratégico-militar, vindos do Exterior, que arrasaram com a estabilidade do Uruguai como um imenso rolo compressor. Para complicar, o primeiro presidente eleito nessa fase, o general Oscar Gestido, escolhido em 1966, não conseguiu cumprir4 sequer um ano de seu mandato, falecendo em 1967. Assumiu o governo o seu vice, Jorge Pacheco Areco.

Vieram as más gestões econômicas, com o consequente crescimento da inflação, achatamento salarial e descontentamento trabalhista, que em pouco tempo descambou para a anarquia. A tal ponto que, em 1969, Areco decretou um herético estado de sítio. Vieram as radicalizações dos extremos, da esquerda e da direita. Durante toda uma década, os guerrilheiros tupamaros tornaram-se verdadeiro terror no Uruguai. Até que Juan Maria Bordaberry entregou, literalmente, o comando do governo aos militares.

De insucesso em insucesso, de tropeço em tropeço, os uruguaios caíram na atual situação, em que a imprensa está amordaçada por uma feroz censura, que já puniu, desde 1981 (quando o atual general de plantão no poder, Gregório Alvarez, assumiu, depois de outro golpe de Estado) 30 órgãos de comunicação. As prisões, que nada ficam a dever às masmorras medievais, estão abarrotadas de presos políticos, que não têm respeitados seus comezinhos direitos. Os partidos estão proscritos e o regime brinca de “dá e tira”, em torno de um muito falado, e pouco praticado, projeto de abertura.

É esse deprimente estado de coisas que o ex-senador cassado, do tradicional Partido Blanco, Wilson Ferreira Aldunate, sonha mudar. Após longos e penosos anos de exílio, ele retorna à pátria, “recepcionado” por um esquema de guerra, montado pelos detentores do poder para silenciá-lo. Como se um único cidadão pudesse colocar em risco uma “segurança nacional” que há muito não existe. Aldunate, no atual quadro institucional, simboliza a reconquista de tudo o que o povo uruguaio já teve, mas acabou perdendo em razão de uma sucessão de erros de enfoque e do empenho de grupos interessados em militarizar o “Cone Sul”.

A população do Uruguai, neste momento, tem todos os motivos do mundo para sentir-se amargurada. Afinal, deixou o Paraíso da democracia plena , em que o país era raro modelo de estabilidade em um mundo instável para despencar de ponta cabeça no Inferno do caudilhismo, que sempre desgraçou este nosso pobre e atrasado continente.

(Artigo publicado na editoria Internacional do Correio Popular, em 17 de junho de 1984).



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