Testemunhas de uma época
Pedro
J. Bondaczuk
As artes foram as
primeiras e fundamentais manifestações de inteligência dos nossos ancestrais
das cavernas. Os que aprenderam a expressar suas vontades, pensamentos e
sentimentos e se fizeram entendidos por outros membros do clã, não apenas
sobreviveram às condições hostis de um mundo perigoso e desconhecido, cheio de
mistérios e indagações, em que o homem era um dos animais mais frágeis e
desprotegidos da natureza, como evoluíram (mental e por conseqüência materialmente),
progrediram e lançaram as sementes da civilização. Os que não conseguiram essa
façanha, ou foram assimilados por tribos mais fortes e esclarecidas, ou,
simplesmente, pereceram.
O que vemos neste
século XXI da era Cristã, repleto de maravilhas e horrores, começou há
milênios, lá atrás, na bruma dos séculos, com o solitário e selvagem artista,
que pela primeira vez conseguiu reproduzir, no teto de sua caverna, uma caçada.
Acreditava que aqueles desenhos rústicos que fazia com terracota tinham poderes
mágicos. Ou seja, que paralisariam os animais que pretendia abater e os
tornariam presas fáceis às suas rústicas armas. Precisava abatê-los. Afinal,
seria com a sua carne que iria se alimentar e alimentar o grupo. Seria com sua
pele que se vestiria e aos membros do clã. Seria com seus ossos que fabricaria
utensílios que lhe facilitassem o cotidiano etc.
Daquelas rústicas
figuras surgiram os alfabetos. E destes, esta maravilha, a que não damos valor
– pois que conhecemos desde que nascemos –, mas que sem ela, estaríamos,
certamente, ainda naquelas insalubres e instáveis cavernas, vivendo como bichos
selvagens: a escrita. Foi ela que possibilitou o registro das descobertas (das
mais comezinhas às transcendentais) e sua transmissão às sucessivas gerações,
impedindo que estas retroagissem à barbárie. Foi ela que desenvolveu o
raciocínio e consolidou a razão. E ela é, hoje, essa poderosa ferramenta da
nossa atividade: a criação literária.
O escritor é a grande
testemunha de uma época. Contudo, não se limita a testemunhar, mas reproduz o
que vê, ouve, pensa e sente, mostrando às gerações futuras como se vivia em seu
tempo. Nenhum historiador sério pode escrever a história de qualquer período do
passado, com exatidão e verdade, se não consultar os livros dos escritores
dessa época. São eles que refletem, com exatidão, como eram as pessoas, o que
sentiam, como agiam, onde moravam, como se relacionavam etc. nesse determinado
tempo.
Os livros que
escrevemos, mesmo os que resultem em monumentais encalhes, nunca são inúteis.
Pelo contrário, são importantes, importantíssimos, muito mais do que
eventualmente venhamos a nos damos conta. São “mensagens colocadas em
garrafas”, lançadas no vasto mar das eras. E, a despeito da vastidão desse
oceano do tempo, sempre haverão de cair, um dia, nas mãos de alguma pessoa
curiosa, que saberá, por nosso intermédio, como nossa geração vivia, o que
pensava e o que sentia, séculos, quiçá milênios após nossa extinção física.
Em nossas biografias, certamente aparecerão os textos que viermos a
produzir. Um dia, provavelmente na virada do século XXI para o XXII, nossos relatos,
espontâneos e despreocupados, serão objetos de acurado estudo por parte de
estudantes do futuro, da mesma forma que os de Machado de Assis, Lima Barreto,
Aluízio Azevedo e tantos outros foram um dia para nós. Exagero? Longe disso!
Os escritores citados foram testemunhas do seu tempo. Descreveram o
que pensavam, como se vestiam, onde moravam etc. as pessoas do século XIX. Nós
temos o privilégio de fazer o mesmo, mas abrangendo dois séculos, em vez de
apenas um, dos quais fomos “testemunhas” (pelo menos de trechos deles): os XX e
XXI.
Numa rápida passada de olhos nos lançamentos das editoras, podemos
constatar que já há alguns livros tratando da história do século passado. E nos
surpreendemos. Afinal, testemunhamos boa parte desses acontecimentos que hoje
já são história. Vivemos parte deles. De alguns, fomos até personagens, mesmo
que secundários.
Resistimos às ditaduras, nos horrorizamos com as duas bombas atômicas
que em questão de minutos varreram do mapa as cidades japonesas de Hiroshima e
Nagasaki, tomamos ciência do esfacelamento de uma superpotência, a União
Soviética. Alguns de nós testemunhamos o dia em que Neil Armstrong
se tornou o primeiro homem a pisar no solo da Lua. Emocionamo-nos com as mortes
de Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves e Ayrton Senna que traumatizaram o
País. E assim por diante.
Todos esses fatos, hoje, constituem pano de fundo de nossos contos e
romances (ou de boa parte deles). O conhecimento de história é importantíssimo
para o escritor de ficção. Dá verossimilhança às suas produções, situando suas
histórias num determinado período, com seu respectivo contexto.
Claro que posso criar mundos em profusão, distantes no tempo e no
espaço, mas que só existem em minha imaginação, como fazem os autores de ficção
científica. Eles avançam não parcos anos no calendário, mas milênios. Isso,
contudo, não acumplicia o leitor. Tira um pouco a verossimilhança do enredo. As
descrições das cidades, pessoas, indumentárias, moradias etc. soam
artificiosas, forçadas, inverossímeis. O leitor gosta de se identificar com
cenários e personagens que conhece (ou julga conhecer).
Os textos que publicamos hoje que, ás vezes, passam batidos ao olhar
do leitor menos atento, amanhã serão procurados com avidez. Mesmo que não
venhamos a nos dar conta, são documentos da nossa época. Afinal, somos
testemunhas oculares de parte da história. Mas levamos uma vantagem sobre as
demais testemunhas: temos talento e disposição para registrar, em texto, o que
acontece tanto em nós, em nosso interior, quanto ao nosso redor. Pense
nisso, escritor amigo.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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