Friday, August 19, 2016

Testemunhas de uma época

Pedro J. Bondaczuk

As artes foram as primeiras e fundamentais manifestações de inteligência dos nossos ancestrais das cavernas. Os que aprenderam a expressar suas vontades, pensamentos e sentimentos e se fizeram entendidos por outros membros do clã, não apenas sobreviveram às condições hostis de um mundo perigoso e desconhecido, cheio de mistérios e indagações, em que o homem era um dos animais mais frágeis e desprotegidos da natureza, como evoluíram (mental e por conseqüência materialmente), progrediram e lançaram as sementes da civilização. Os que não conseguiram essa façanha, ou foram assimilados por tribos mais fortes e esclarecidas, ou, simplesmente, pereceram.

O que vemos neste século XXI da era Cristã, repleto de maravilhas e horrores, começou há milênios, lá atrás, na bruma dos séculos, com o solitário e selvagem artista, que pela primeira vez conseguiu reproduzir, no teto de sua caverna, uma caçada. Acreditava que aqueles desenhos rústicos que fazia com terracota tinham poderes mágicos. Ou seja, que paralisariam os animais que pretendia abater e os tornariam presas fáceis às suas rústicas armas. Precisava abatê-los. Afinal, seria com a sua carne que iria se alimentar e alimentar o grupo. Seria com sua pele que se vestiria e aos membros do clã. Seria com seus ossos que fabricaria utensílios que lhe facilitassem o cotidiano etc.

Daquelas rústicas figuras surgiram os alfabetos. E destes, esta maravilha, a que não damos valor – pois que conhecemos desde que nascemos –, mas que sem ela, estaríamos, certamente, ainda naquelas insalubres e instáveis cavernas, vivendo como bichos selvagens: a escrita. Foi ela que possibilitou o registro das descobertas (das mais comezinhas às transcendentais) e sua transmissão às sucessivas gerações, impedindo que estas retroagissem à barbárie. Foi ela que desenvolveu o raciocínio e consolidou a razão. E ela é, hoje, essa poderosa ferramenta da nossa atividade: a criação literária.

O escritor é a grande testemunha de uma época. Contudo, não se limita a testemunhar, mas reproduz o que vê, ouve, pensa e sente, mostrando às gerações futuras como se vivia em seu tempo. Nenhum historiador sério pode escrever a história de qualquer período do passado, com exatidão e verdade, se não consultar os livros dos escritores dessa época. São eles que refletem, com exatidão, como eram as pessoas, o que sentiam, como agiam, onde moravam, como se relacionavam etc. nesse determinado tempo.

Os livros que escrevemos, mesmo os que resultem em monumentais encalhes, nunca são inúteis. Pelo contrário, são importantes, importantíssimos, muito mais do que eventualmente venhamos a nos damos conta. São “mensagens colocadas em garrafas”, lançadas no vasto mar das eras. E, a despeito da vastidão desse oceano do tempo, sempre haverão de cair, um dia, nas mãos de alguma pessoa curiosa, que saberá, por nosso intermédio, como nossa geração vivia, o que pensava e o que sentia, séculos, quiçá milênios após nossa extinção física.

Em nossas biografias, certamente aparecerão os textos que viermos a produzir. Um dia, provavelmente na virada do século XXI para o XXII, nossos relatos, espontâneos e despreocupados, serão objetos de acurado estudo por parte de estudantes do futuro, da mesma forma que os de Machado de Assis, Lima Barreto, Aluízio Azevedo e tantos outros foram um dia para nós. Exagero? Longe disso!

Os escritores citados foram testemunhas do seu tempo. Descreveram o que pensavam, como se vestiam, onde moravam etc. as pessoas do século XIX. Nós temos o privilégio de fazer o mesmo, mas abrangendo dois séculos, em vez de apenas um, dos quais fomos “testemunhas” (pelo menos de trechos deles): os XX e XXI.

Numa rápida passada de olhos nos lançamentos das editoras, podemos constatar que já há alguns livros tratando da história do século passado. E nos surpreendemos. Afinal, testemunhamos boa parte desses acontecimentos que hoje já são história. Vivemos parte deles. De alguns, fomos até personagens, mesmo que secundários.

Resistimos às ditaduras, nos horrorizamos com as duas bombas atômicas que em questão de minutos varreram do mapa as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, tomamos ciência do esfacelamento de uma superpotência, a União Soviética. Alguns de nós testemunhamos o dia em que Neil Armstrong se tornou o primeiro homem a pisar no solo da Lua. Emocionamo-nos com as mortes de Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves e Ayrton Senna que traumatizaram o País. E assim por diante.

Todos esses fatos, hoje, constituem pano de fundo de nossos contos e romances (ou de boa parte deles). O conhecimento de história é importantíssimo para o escritor de ficção. Dá verossimilhança às suas produções, situando suas histórias num determinado período, com seu respectivo contexto.

Claro que posso criar mundos em profusão, distantes no tempo e no espaço, mas que só existem em minha imaginação, como fazem os autores de ficção científica. Eles avançam não parcos anos no calendário, mas milênios. Isso, contudo, não acumplicia o leitor. Tira um pouco a verossimilhança do enredo. As descrições das cidades, pessoas, indumentárias, moradias etc. soam artificiosas, forçadas, inverossímeis. O leitor gosta de se identificar com cenários e personagens que conhece (ou julga conhecer).

Os textos que publicamos hoje que, ás vezes, passam batidos ao olhar do leitor menos atento, amanhã serão procurados com avidez. Mesmo que não venhamos a nos dar conta, são documentos da nossa época. Afinal, somos testemunhas oculares de parte da história. Mas levamos uma vantagem sobre as demais testemunhas: temos talento e disposição para registrar, em texto, o que acontece tanto em nós, em nosso interior, quanto ao nosso redor. Pense nisso, escritor amigo.


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