Wednesday, August 31, 2016

Enredo em que o cólera põe fim a uma “guerra de santos”

Pedro J. Bondaczuk

O escritor siciliano Giovanni Carmelo Verga, considerado um dos criadores do Verismo – escola realista surgida na literatura italiana no fim do século XIX – legou à posteridade pelo menos 13 romances e 31 novelas, muitos dos quais obras-primas literárias (quer na forma e quer, sobretudo, no conteúdo) – respeitado não somente na ilha em que nasceu, mas em toda a Itália. Tanto que, no final da vida, seu prestígio e sua projeção intelectual eram tamanhos, que chegou a ser nomeado para integrar o Senado italiano. Muita gente, quando se menciona a Sicília, pensa de imediato na Máfia e nos males que essa organização criminosa já causou e continua causando, como se fosse a única coisa que a caracteriza. Não é!!! Claro que isso é fruto da mais ostensiva desinformação.

Em tempos mais remotos, a ilha foi o berço natal de magníficos filósofos e extraordinários poetas. Ali nasceram, também, extraordinários escritores, entre os quais dois ganhadores de Prêmio Nobel de Literatura. A Sicília, além do mais, é a terra natal, por exemplo, de Vitaliano Brancati, Salvatore Quasimodo, Luigi Capuana, Luigi Pirandello, Leonardo Sciascia, Gesualdo Bufalino, Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Andrea Camilleri e... óbvio, de Giovanni Verga. Como se vê, a ilha foi berço de escritores geniais em quantidade maior do que muitos países com grande tradição literária. Quem conhece, mesmo que superficialmente, a Literatura italiana, sabe da importância desses autores que citei.

Alguns livros de Giovanni Verga são tidos e havidos pelos mais renomados críticos literários da Europa como obras-primas. Estão neste caso, apenas para citar alguns, os romances “I Malavoglia” e “Mastro Dom Gesualdo” e a coletânea de oito histórias curtas reunidas no volume “A vida nos campos”, que tenho em mãos, em sua versão em espanhol. Dos oito contos deste livro, um interessa-me em particular, embora os outros sete sejam todos deliciosos, carregados de verdade e de humor. É o intitulado “Guerra de santos”, em que Verga cita uma epidemia de cólera como pano de fundo do enredo. A história é ambientada em um pequeno povoado da Itália, dos tantos que há por lá. Nele, os moradores estão divididos em duas facções rivais, inimigas inconciliáveis.

Um desses bandos é do bairro alto do vilarejo que tem, como padroeiro, São Roque. E o outro, por conseqüência, é do bairro baixo, que defende com paixão São Pascual, não admitindo outra devoção tão absoluta. Os dois grupos, não apenas rivais, mas inimigos jurados, não escolhem ocasiões para se confrontarem. Basta que se cruzem para se hostilizarem e se agredirem mutuamente, em conflitos que se repetem com assustadora freqüência. Tudo começa com um bando exaltando os méritos de seu padroeiro e depreciando o patrono dos rivais nas periódicas procissões que promovem. Daí para a pancadaria explícita é questão de mera piscada. Das palavras, passam aos gestos ofensivos e destes para pancadaria generalizada explícita é coisa de minutos. E lá se vão as dissoluções de procissões, a poder de socos e de pontapés mútuos. É o fanatismo religioso (religioso?!) elevado à enésima potência.

Mas Verga “apimenta” ainda mais uma história já por si só “ardida”. Traz à baila um casal de namorados que não consegue se entender por causa dessa “guerra dos santos”. Sarrida, a donzela, é adepta de São Roque e Turi, seu guapo pretendente, de São Pascual. Nenhum dos dois está disposto a abrir mão de suas convicções e assim o relacionamento não prospera. Fica próximo da ruptura definitiva. Bem, leitor, adianto que os dois pombinhos acabam se reconciliando, mas, para isso, foram necessárias duas desgraças juntas que assolaram o vilarejo: uma severíssima seca e uma não menos perversa epidemia de cólera. As circunstâncias obrigaram os dois bandos a unirem forças e a rogarem os préstimos dos respectivos padroeiros, mas juntos, para ampliar a força da intercessão. Dessa forma, o casalzinho apaixonado se reconcilia e ocorre, enfim, o esperado “happy end”. E tudo isso é narrado com muita graça e muito humor por um perito no manejo da palavra.


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