Saturday, August 06, 2016

Gorbachev atua dentro da lei


Pedro J. Bondaczuk


O uso dos poderes extraordinários que lhe foram conferidos pelo Soviete Supremo, por parte do presidente soviético, Mikhail Gorbachev, para a implantação de suas reformas, vem sendo encarado como um retrocesso político, tanto no Ocidente, quanto dentro da própria URSS.

A intervenção do governo central no sistema de segurança de Moscou, por exemplo, está sendo encarado como um ato truculento, de força, não condizente com a democracia que o líder tanto apregoa. Todavia, sua ação está rigorosamente fundamentada na legislação existente. Se a lei é ruim, ela que seja mudada por aqueles a quem compete tal tarefa. O que não se admite num Estado de Direito é o seu desrespeito ou o cerceamento de sua aplicação. Se ela for burlada, impunemente, estará sendo implantada não a democracia, mas a anarquia, no sentido mais pejorativo do termo.

Além do equívoco de se pensar que o objetivo de Gorbachev é o de ser o coveiro do socialismo, persiste um outro, que acha que a liberdade individual é a liberação geral para que os cidadãos façam o que quiserem, mesmo que seus atos atinjam direitos alheios.

A "perestroika" foi inspirada num outro projeto liberalizante, tragicamente esmagado pelos tanques soviéticos em setembro de 1968 igualmente fundamentado no Estado de Direito. Trata-se do que se convencionou chamar de "Primavera de Praga", encabeçada pelo então líder checo e atual presidente do Parlamento da Checoslováquia, Alexander Dubcek. Ou seja, "o socialismo com face humana".

O programa de Gorbachev, porém, em virtude de diversas circunstâncias, as quais convém analisar oportunamente, é um projeto muito mais ousado e até mesmo temerário. Chega a ser extremamente ambicioso. Não tem como meta a mera substituição dos ideais socialistas pelo capitalismo, como o conhecemos hoje. Pretende, sim, incorporar fundamentos capitalistas, como o mercado livre. Mas em momento algum admite abrir mão da justiça social, autêntica, e não a apregoada e jamais praticada pelos cardeais do Partido Comunista.

O que Gorbachev entendeu bem foi o fato de que, embora o seu país esteja ameaçado por uma crise como jamais teve em toda a sua história, precisa implantar sua reforma gradualmente, no tempo e nas circunstâncias exatos, para não arruinar as poucas conquistas que os soviéticos empreenderam nas últimas sete décadas.

Economistas lúcidos do Ocidente, aqueles que já se livraram dos chavões e estereótipos da "guerra fria", indiretamente defendem essa atitude de prudência na implantação de um mercado livre. Um deles é John Kenneth Galbraith, que num artigo publicado recentemente, assinalou: "Num sentido real, tanto a Leste como a Oeste, nossa tarefa é a mesma: buscar e descobrir o sistema que combine o melhor da ação motivada pelo mercado e pelo social". E mais adiante observa: "A volta à atividade produtiva normal na Europa Ocidental depois da Segunda Guerra Mundial, uma tarefa menos complexa do que aquela enfrentada pelo Leste europeu e União Soviética, consumiu a maior parte da década. Na Grã-Bretanha levou cerca de sete anos até que a libra fosse uma moeda totalmente conversível, e o racionamento de alimentos e controle de preços associados foram igualmente prolongados".

Cobrar, portanto, urgência de Gorbachev na implantação das suas reformas é pretender induzir a superpotência do Leste ao suicídio, à sua autofagia.

(Artigo publicado na página 14, Internacional, do Correio Popular, em 28 de março de 1991).


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