Friday, August 19, 2016

Desterrados do gênero humano


Pedro J. Bondaczuk


A situação social no País mostra que a população já chegou ao “fundo do poço” em termos de degradação da qualidade de vida. Claro que a constatação se refere ao Brasil real. Aos 104 milhões de pessoas que ganham mal (quando conseguem estar empregados), não têm acesso à educação, à saúde, ao consumo, para as quais até mesmo seu único patrimônio, a esperança, vem sofrendo acelerada erosão.

Esse contingente imenso vem sendo convocado por sucessivos governos a “apertar os cintos”, como se ainda os tivessem, numa pretensa e nunca levada a sério luta contra a inflação. Todo o ônus dos sucessivos planos econômicos, que não passaram de meras experiências acadêmicas, quando não de golpes populistas, recai sobre os seus frágeis ombros.

O outro Brasil, o da fantasia, de cerca de 20 milhões de pessoas, ou pouco mais, gasta seu tempo em inócuas discussões, que lembram briguinhas de comadres. Esse grupo, que constitui o chamado mercado, é o que consome e tem plenas condições de se proteger contra o monstro inflacionário, no cômodo guarda-chuva da ciranda financeira.

Para tais brasileiros, tanto faz que as taxas de inflação sejam de 10%, 20% ou 30% mensais. Seu dinheiro está sempre protegido, ao contrário daqueles assalariados que recebem mensalmente até três e vergonhosos salários mínimos.

A maioria destes últimos sequer tem dinheiro para pagar a passagem de ônibus para ir ao trabalho. O noticiário de televisão da semana mostrou isso. Exibiu um enorme contingente de “andarilhos” urbanos que perfaz enormes distâncias. Desnutridos, maltrapilhos, no limite de suas forças, esses cidadãos só têm de seu a esperança.

Estes não estão preocupados com o chamado Plano Verdade, anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, e que, nem bem começou a tomar forma, já está sendo sabotado. Aliás, nem mesmo sabem do que se trata.

Tais brasileiros já estão no “fundo do poço”, ou até mais, se isso for possível. É este mesmo contingente, cinicamente explorado, desinformado, desassistido, esquecido nos períodos em que não há eleições à vista, que com certeza será cortejado no próximo ano, quando pretensos “salvadores da pátria” forem pedir o seu voto.

Projetos envolvendo estes ofendidos e humilhados existem em profusão. Está aí o plano de combate à fome e à miséria que, apesar de ser tão alardeado, ainda não saiu do papel. Palavras, promessas e intenções não enchem barriga.

Enquanto os políticos têm seus arroubos de populismo, o tecido social brasileiro se necrosa e se decompõe. Famílias desagregam-se, pois como diz a sabedoria popular, “em casa que falta o pão, todos gritam e ninguém tem razão”.

Hordas de crianças abandonadas perambulam pelas ruas das grandes cidades, num curso intensivo de pós-graduação na “universidade do crime”. A violência se multiplica às raias do intolerável.

O ex-ministro da Economia do Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet, Hermann Bucchi, responsável pela atual e admirada estabilidade econômica chilena, constatou, numa entrevista : “Apenas depois de chegar ao fundo do poço a população em geral aceita transformações importantes”.

Os 104 milhões de habitantes do Brasil real já chegaram. Basta andar pelas ruas com o olhar atento para fazer essa constatação. E foram até mais longe. Poderiam ser classificados com uma expressão usada pelo escritor português Alexandre Herculano: são os “desterrados no meio do gênero humano”.

(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, 18 de junho de 1993).


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