Desterrados do gênero humano
Pedro J. Bondaczuk
A situação social no País
mostra que a população já chegou ao “fundo do poço” em termos de degradação da
qualidade de vida. Claro que a constatação se refere ao Brasil real. Aos 104
milhões de pessoas que ganham mal (quando conseguem estar empregados), não têm
acesso à educação, à saúde, ao consumo, para as quais até mesmo seu único
patrimônio, a esperança, vem sofrendo acelerada erosão.
Esse
contingente imenso vem sendo convocado por sucessivos governos a “apertar os
cintos”, como se ainda os tivessem, numa pretensa e nunca levada a sério luta
contra a inflação. Todo o ônus dos sucessivos planos econômicos, que não
passaram de meras experiências acadêmicas, quando não de golpes populistas,
recai sobre os seus frágeis ombros.
O
outro Brasil, o da fantasia, de cerca de 20 milhões de pessoas, ou pouco mais,
gasta seu tempo em inócuas discussões, que lembram briguinhas de comadres. Esse
grupo, que constitui o chamado mercado, é o que consome e tem plenas condições
de se proteger contra o monstro inflacionário, no cômodo guarda-chuva da
ciranda financeira.
Para
tais brasileiros, tanto faz que as taxas de inflação sejam de 10%, 20% ou 30%
mensais. Seu dinheiro está sempre protegido, ao contrário daqueles assalariados
que recebem mensalmente até três e vergonhosos salários mínimos.
A
maioria destes últimos sequer tem dinheiro para pagar a passagem de ônibus para
ir ao trabalho. O noticiário de televisão da semana mostrou isso. Exibiu um
enorme contingente de “andarilhos” urbanos que perfaz enormes distâncias.
Desnutridos, maltrapilhos, no limite de suas forças, esses cidadãos só têm de
seu a esperança.
Estes
não estão preocupados com o chamado Plano Verdade, anunciado pelo ministro da
Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, e que, nem bem começou a tomar forma, já
está sendo sabotado. Aliás, nem mesmo sabem do que se trata.
Tais
brasileiros já estão no “fundo do poço”, ou até mais, se isso for possível. É
este mesmo contingente, cinicamente explorado, desinformado, desassistido,
esquecido nos períodos em que não há eleições à vista, que com certeza será
cortejado no próximo ano, quando pretensos “salvadores da pátria” forem pedir o
seu voto.
Projetos
envolvendo estes ofendidos e humilhados existem em profusão. Está aí o plano de
combate à fome e à miséria que, apesar de ser tão alardeado, ainda não saiu do
papel. Palavras, promessas e intenções não enchem barriga.
Enquanto
os políticos têm seus arroubos de populismo, o tecido social brasileiro se
necrosa e se decompõe. Famílias desagregam-se, pois como diz a sabedoria
popular, “em casa que falta o pão, todos gritam e ninguém tem razão”.
Hordas
de crianças abandonadas perambulam pelas ruas das grandes cidades, num curso
intensivo de pós-graduação na “universidade do crime”. A violência se
multiplica às raias do intolerável.
O
ex-ministro da Economia do Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet,
Hermann Bucchi, responsável pela atual e admirada estabilidade econômica
chilena, constatou, numa entrevista : “Apenas depois de chegar ao fundo do poço
a população em geral aceita transformações importantes”.
Os
104 milhões de habitantes do Brasil real já chegaram. Basta andar pelas ruas
com o olhar atento para fazer essa constatação. E foram até mais longe.
Poderiam ser classificados com uma expressão usada pelo escritor português
Alexandre Herculano: são os “desterrados no meio do gênero humano”.
(Artigo
publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, 18 de junho de 1993).
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